sexta-feira, 10 de julho de 2009

Momentos de beleza – Teologia e MPB a partir de Tillich



Por Carlos Eduardo B. Calvani

Resumo

O presente artigo destaca a importância dos pressupostos abertos por Tillich com sua proposta de uma Teologia da Cultura, particularmente no tocante á abordagem de obras de arte. O texto apresenta brevemente os princípios metodológicos de Tillich, destacando sua abertura ao mistério. Também aponta as possibilidades abertas pela abordagem referencial bem como seus limites, buscando pistas para abordagens não-referenciais das obras de arte, a partir da única “resposta” que as mesmas podem nos oferecer: “momentos de beleza”.



Introdução

Recentemente li dois trabalhos sobre Teologia e música. Em 2001, a revista Concilium publicou um artigo de Ola Sigurdson intitulado “Cantos do desejo: sobre música pop e a questão de Deus”. A autora, professora da Universidade de Lund, na Suécia, abordar música pop a partir da célebre frase de Agostinho: “tu nos criaste para Ti, e nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em Ti”. A música pop, para ela, expressaria o desejo, o anseio, uma espécie de insatisfação da pessoa em relação à vida e a busca por Deus como fonte capaz de saciar a infinita fome de realização plena. Em seu artigo, Sigurdson avalia letras de canções de Madonna, Beatles, Bruce Springsten, U2 e Bon Jovi. Em 2000 foi publicado um interessante livro de Jeremy Begbie, Theology, Music and Time. O autor é músico profissional, e tem atuado em concertos como pianista, oboísta e regente. Além disso, é professor de Teologia sistemática e Vice-Reitor da Faculdade de Teologia, Ridley Hall da Universidade de Cambridge. São quase 400 páginas procurando identificar e interpretar temas teológicos na obra de Beethoven, Pierre Boulez, John Cage. Stravinsky e, naturalmente, Mozart. Begbie deixa de lado a música marcadamente associada com palavras, textos, narrativas ou liturgia e trata mais da música que possa colocar em relevo as propriedades peculiares dos sons musicais que ele deseja salientar e o modo distinto como os sons operam. Dentro disso, a área de concentração do autor é a temporalidade. “A música é uma arte temporal”. “A música nos oferece uma forma particular de participação na temporalidade do mundo e desse modo, ela tem a capacidade de evocar alguma coisa da natureza dessa temporalidade e nosso envolvimento na mesma”.

Em ambos os textos, não há nenhuma menção a Paul Tillich. Isso talvez sinalize para algo significativo: se Tillich de certo modo inaugurou a abordagem que veio a ser conhecida como “Teologia da Cultura”, hoje é necessário ir além dos postulados por ele erigidos. À luz dessas considerações, pretendo esboçar algumas idéias básicas do que considero ainda relevante na obra de Tillich, bem como apresentar minhas atuais suspeitas de suas limitações. Desenvolverei meu tema ilustrando com algumas canções da MPB:

1. Teologia da Cultura

Dentre as muitas contribuições de Tillich para a teologia contemporânea, acentuo seu reconhecimento da pertinência mútua entre religião e cultura. Desde o final do século 19 com o positivismo e Marx, as experiências religiosas sofriam ataques de vários flancos. Isso se acentuou no século XX com Freud e mesmo em correntes teológicas como a neo-ortodoxia de Barth. Tillich não apenas recuperou a dimensão positiva da vivência religiosa, como também ousou afirmar que a religião permeia todas as manifestações culturais. A religião é reconhecida por ele como elemento fundamental (substância) de toda cultura, e a cultura, por sua vez, seria o elemento formal da dimensão religiosa. Isso estava na contramão das tendências que preconizavam o fim da religião ou sua superação nas sociedades industriais secularizadas. Desse modo, Tillich ainda na sua fase alemã, já afirmava que toda grande obra de arte, toda filosofia importante, toda manifestação artística, é essencialmente religiosa porque manifesta a busca pelo absoluto.

A conseqüência dessa visão representou naquela época a “descoberta”, por assim dizer, de um novo campo a ser explorado pela teologia. A isso ele chamou “teologia da cultura” em contraste com a “teologia da igreja”. No início do século passado, Tillich já distinguia entre essas duas possibilidades do labor teológico. A “teologia da igreja” é aquela na qual todos nós fomos treinados. Visa a defesa e expansão da instituição religiosa e suas preocupações giram em torno de dogmas, doutrinas e práticas pastorais. O teólogo da igreja, devido á sua necessidade de lidar com assuntos internos da vida eclesiástica, será sempre mais conservador e seletivo. Tillich, porém, dizia que o teólogo da cultura, em contrapartida, não está preso às preocupações institucionais. É um observador atento do movimento vivo da cultura, e se mantém aberto aos múltiplos sinais da revelação. Se hoje isso pode parecer repetitivo, na época de Tillich tratava-se de um postulado revolucionário, pois afirmava que a revelação não está somente onde a igreja diz estar, mas mais além, nos lugares onde a igreja pouco se interessa a ir, nos cenários e figuras que pouco se interessa em contemplar e nos sons que pouco se interessa em ouvir. Desse modo, a teologia era libertada da tutela eclesiástica e do conseqüente isolamento em que se encontrava, em parte devido ás suas próprias restrições temáticas.

2. Metalogia

Na prática, Tillich incentivava os teólogos de sua época a ficarem atentos às perguntas levantadas pelo contexto em que viviam e que se manifestam através das artes. Essa proposta exigia um novo método de abordagem dos problemas e Tillich o denominou de “metalogia”, ou “método metalógico”. Em 1922 Tillich já anunciava que essa proposta metodológica seria capaz de garantir o aspecto objetivo, racional e crítico de toda pesquisa, mas também superá-lo ou complementá-lo. Servindo-se dos estudos de Rudolff Otto e da incipiente fenomenologia, Tillich propunha sintetizar a metodologia crítica com a intuitiva, reunindo-as num método que fosse, simultaneamente, crítico e intuitivo. O método metalógico se funda no método crítico dialético. Mas o transcende através da intuição das essências que não se dirige para as coisas particulares ou suas qualidades, nem se atém á forma individual. Antes, percebe as tensões e polaridades. Segundo Tillich, “o método crítico, bem como o intuitivo, são incapazes de resolver isoladamente o problema central da filosofia da religião e, por conseguinte, também o da filosofia da cultura – a saber, a questão do sentido último da realidade do real”. A complementaridade das duas perspectivas se faz necessária, porque o método crítico não é capaz de atingir a essência (Was) das coisas. O intuitivo, por sua vez, não consegue responder à questão da existência (daB) das coisas tal como aparecem na história”. A partir daí, a construção de um método crítico-intuitivo se impõe como exigência. O aspecto crítico consideraria as formas dadas na cultura, enquanto o intuitivo perguntaria por seu significado espiritual, o conteúdo substancial de cada forma.

A palavra “metalogia” guarda relações semânticas com “metafísica”. Assim como a metafísica pretendia ir além (meta) do físico, do sensorial, a metalogia que ir além (meta) da lógica. Não se trata de negar a lógica ou suprimi-la, mas de transcendê-la. E Tillich frisava que o pensamento lógico e racional é suficiente para dar conta apenas das conotações da forma, mas não é capaz de participar plenamente no significado do conteúdo, uma vez que esse tem aspectos “irracionais” ou “ilógicos”. Segundo ele, “a essência do método metalógico é projetar o elemento irracional dessas funções (intuição e fé) no interior da própria lógica, de modo que os conceitos “pensamento” e “ser” recebam um tom metalógico: o pensamento se identifica com a forma e o ser com o conteúdo. O pensamento expressa o elemento racional, estruturante e formal, enquanto o ser expressa o elemento irracional, vital e infinito, que constitui a profundidade e a força criativa de toda realidade.

Na metalogia, a intuição recebe peso considerável. A intuição não se dirige apenas às coisas particulares ou ás suas qualidades, mas ás tensões e polaridades que constituem o elemento verdadeiramente essencial do objeto estudado. Segundo Tillich, “a meta da metalógica é a intuição da dinâmica interna na estrutura da realidade significativa”. Desse modo Tillich rejeita o agnosticismo ontológico de Kant. A possibilidade de uma teologia da cultura repousa sobre a convicção fundamental de que o pensamento é capaz de ultrapassar as formas lógicas do sentido e tocar a profundidade infinita do conteúdo religioso do ser.

A perspectiva aberta por Tillich resultou em originais, criativas e ousadas abordagens teológicas de obras de arte, algo que Tillich começa a desenvolver já na Alemanha e continua nos Estados Unidos. Infelizmente, a maioria das pessoas conhece apenas o Tillich da Teologia Sistemática. Ali ele é “teólogo da Igreja”. Mas é impressionante a quantidade de textos pouco conhecidos de Tillich nos quais ele avalia obras de arte, sobretudo pinturas, mas também literatura e, em menor escala, a música. Com a teologia da cultura, Tillich buscou compreender melhor suas próprias experiências, justificá-las teologicamente e fazer com que as experiências estéticas de outras pessoas pudessem também ser qualificadas e reconhecidas como religiosas, na medida em que delas irrompe uma percepção do poder de ser, um abalo existencial que provoca sensíveis mudanças no sujeito que as vivencia.

Mas o que vem a ser a experiência estética para ele? Sempre que Tillich relata o que viveu diante do quadro de Botticelli, está presente a idéia de “choque”. Experiência estética é o choque provocada por uma obra de arte no sujeito que se depara sensorialmente com ela. Quando Tillich fala em experiência, tem sempre em mente um elemento de abalo, de choque recebido “de fora” do sujeito, e essa experiência, para ele, corresponde à idéia de revelação. A experiência estética se caracteriza por ser intuitiva e não conceitual. Os sentidos são o primeiro canal de recepção. Só depois de passar pela via sensorial é que o sujeito submete a experiência recebida às categorias conceituais e classifica a obra de acordo com seus padrões de beleza. Em Filosofia da Religião, Tillich diz que em cada experiência estética o sentido incondicional “vibra” e que todo sentimento estético é um sentimento transcendente.

3. Abertura ao mistério

Esse é outro ponto que julgo muito valioso na obra de Tillich. Ao contrário do que muitos pensam, não o considero um teólogo racionalista. Ele era profundamente aberto aos mistérios que povoam o mundo e que muitos teólogos tentam dessacralizar. Tillich viveu intensamente essa tensão entre mistério e as tentativas de explicar o mistério. Mas, pelo pouco que conheço de sua obra, nunca cedeu à tentação de racionalizar o mistério, pois esse sempre reaparece, como diz Gilberto Gil: “mistério sempre há de pintar por aí”:

Uma canção pouco conhecida de Gilberto Gil talvez possa ilustrar essa idéia. Ela fala dos milagres que ocorrem num santuário de peregrinação do Nordeste. Eu quase ia escrevendo “os milagres que supostamente ocorrem...” Lembrei-me, porém, que a Teologia lida sempre com o mistério e qualquer tentativa de racionalizar o mistério é uma afronta em si à sua sacralidade. Como ocorre em toda religiosidade popular, coisas fabulosas e misteriosas são narradas sem que recebam explicações científicas plausíveis. Por isso, acabam permanecendo no nível do mito, que Tillich sempre preservou e valorizou:
XOTE (Gilberto Gil/Rodolfo Stroeter)

Foi quando a chuva fez a curva no horizonte
Deixando o monte da viúva sem molhar
Que eu me dei conta que a santa lá da fonte
Ficou três dias sem beata pra rezar


Ficou três dias sem beata pra cantar
A cantoria que há dez anos todo dia vem cantar
As rezadeiras todas filhas de Maria
Muitas vindas da Bahia com promessas pra pagar
Rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas elas com um bocado de promessas pra pagar

Aquela fonte permanece desaguando
De um milagre que há dez anos acontece no lugar
Ela não brota de uma grota, de uma pedra
Nunca medra como qualquer fonte costuma medrar
Bem na catinga onde quase nunca pinga
Nessa fonte sempre chove todo dia sem falhar

Esse fenômeno de fato inusitado
Parece que é provocado pela firme devoção
Das rezadeiras que vêm sempre em romaria
De Alagoas, Pernambuco, Paraíba e região
Mas todos sabem, se a oração não principia
Com uma moça da Bahia
Então chover não chove não

Algumas moças rezadeiras que vieram
De outros lugares sem ligar pra tradição
Cantaram tudo, tudo tudo que puderam
Mas nos três dias não choveu no lajedão
Nesses três dias sem as moças da Bahia
Pra cantar a cantoria todo mundo percebeu
Não adianta, pirulito é pirulito, piriquito é piriquito
Mito é mito e Deus é Deus


4. Tema e Estilo – Possibilidades e limites da abordagem referencial

Pretendo sugerir a seguir algumas possibilidades de aproximação entre a Teologia da Cultura de Tillich e canções da MPB além das já descritas em meu livro “Teologia e MPB”.

Em Existentialist Aspects of Modern Art, Tillich elabora quatro categorias para falar dos níveis de relação entre arte e religião. Os conceitos-chave são “tema” e “estilo”. “Tema” tem a ver com os referenciais explícitos de uma obra de arte. Esses, em geral já são dados pelo próprio artista ao batizar sua criação. A partir daí, a pessoa que irá apreciar a obra de arte (seja um quadro, uma escultura ou música), já se aproxima da obra com um certo condicionamento. “A paixão de são Mateus” de Bach traz temática explicitamente cristã e é impossível fugir desse referencial óbvio. Do mesmo modo, “A Sagração da Primavera” de Stravinsky é subdividida em partes cujos títulos são extraídos das antigas religiões pré-cristãs da Europa. O referencial temático pode, em princípio, criar simpatia ou antipatia no ouvinte antes mesmo de ouvir a música. Em todo caso, é impossível fingir que o tema não existe. Ele está lá – dado pelo artista.

Mas para Tillich, se o referencial temático é importante, ele não é determinante para qualificar a importância religiosa da obra de arte. Para tanto, o que mais pesa é o “estilo”, ou seja, o poder que a arte tem de expressar com vitalidade, coragem e originalidade, o tema proposto. Há aqui nítida herança da apreciação de Tillich pelo expressionismo temperada por tons existencialistas. Não é, portanto, o tema que caracteriza uma arte como religiosa, mas sim o estilo e o conteúdo substancial “inconscientemente presente numa cultura, num grupo e num indivíduo, dando a paixão e o poder diretivo àquele que cria, bem como o significado e o poder de sentido a suas criações”. Desse modo, pode haver, para ele, obras com “tema religioso e estilo não-religioso” ou obras com “tema não-religioso e estilo religioso”. Estabelece-se assim, um gradiente segundo o qual as obras mais completas, por assim dizer, seriam as que manifestam conjuntamente “tema e estilo religiosos”.

A partir daí, Tillich considera “Guernica” de Picasso, uma obra de arte “tipicamente protestante”, não por seu tema, mas pelo seu estilo. O tema é o bombardeio do vilarejo de Guernica. Mas a originalidade da desintegração das formas nunca antes apresentadas determinaria, para Tillich, o “estilo religioso” de Guernica. Talvez Picasso nunca tenha pensado em produzir uma obra “protestante”. Mas isso pouco importa para Tillich, pois para ele, o poder religioso do protesto profético será sempre expressão do “princípio profético”. Nessa lógica, a canção “Burguesia” seria uma atualização brasileira do protesto próprio dos expressionistas alemães da década de 20. Seria uma obra com “tema não-religioso” e “estilo religioso”:

BURGUESIA (Cazuza/George Israel/Ezequiel Neves)

A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia não vai haver poesia

A burguesia não tem charme nem é discreta
Com suas perucas de cabelos de boneca
A burguesia quer ser sócia do Country
Quer ir a Nova York fazer compras
Pobre de mim que vim do seio da burguesia
Sou rico, mas não sou mesquinho,
Eu também cheiro mal, eu também cheiro mal...

A burguesia tá acabando com a Barra
Afundam barcos cheios de crianças
E dormem tranqüilos, e dormem tranqüilos
Os guardanapos estão sempre limpos
As empregadas uniformizadas
São caboclos querendo ser ingleses...

A burguesia não repara na dor da vendedora de chicletes
A burguesia só olha pra si, a burguesia só olha para si
A burguesia é a direita, é a guerra... (...)

No meu livro sobre Teologia e MPB, defendo que a juventude brasileira não é irreligiosa como se pensa. Sentimentos de culpa e consciência das limitações estão muito presentes nas canções do rock brasileiro. Uma delas eu já utilizei em liturgias no momento da confissão de pecados. É uma canção que não apenas lamenta os pecados coletivos, mas se reconhece como participante desses pecados ao dizer no final: “somos iguais em desgraça”. Digno de nota aqui é a insistência na palavra “Coragem”, algo que Tillich muito enfatizou no livro “A Coragem de Ser”. Teríamos então uma canção com estilo e tema religiosos:

BLUES DA PIEDADE (Frejat/Cazuza)

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados

Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas

Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não tem

Pra quem vê a luz, mas não ilumina suas mini-certezas
Vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia

Pra quem não sabe amar
Fica esperando alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade, Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade, Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só pras pessoas fracas
Que estão no mundo e perderam a coragem
Quero cantar o blues com o pastor e o bumbo na praça

Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sobre a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade...

A coragem de afirmar a vida também é cantada pelo grupo Titãs em “O pulso ainda pulsa”, canção que encara com ousadia a tênue linha que separa vida e morte, insistindo em posicionar-se confiantemente e com coragem ao lado da primeira. A letra é recheada de substantivos que descrevem imensa gama de doenças que afetam o ser humano. Os autores põem em pé de igualdade como ameaças à qualidade de vida, tanto as doenças mais diretamente orgânicas como as manifestações inorgânicas (raiva, ciúmes, hipocrisia, culpa). O único verbo da canção (“pulsar”) está diretamente associado aos sinais de vida identificados quando se “toma o pulso” de alguém. Durante toda a canção ouve-se ao fundo o som ininterrupto de um aparelho médico. Embora não haja nenhum tema diretamente religioso, encontramos o enfrentamento corajoso da morte que nos ronda diariamente e a afirmação igualmente ousada da esperança de que as ameaças descritas não impeçam o pulso de continuar a pulsar. Essa canção se enquadraria na tipologia que Tillich denominou “Estilo religioso e tema não-religioso”.

O PULSO AINDA PULSA (Arnaldo Antunes/Titãs)

Peste bubônica, câncer, pneumonia,
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria,
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
E o pulso ainda pulsa...

Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia,
Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria,
Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania,
E o corpo ainda é pouco

Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia,
Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia,

Brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra, afasia,
E o pulso ainda pulsa

É possível identificar na cultura brasileira diversas canções relacionadas diretamente a temáticas religiosas. Vasto campo está na cristologia, desde as conhecidíssimas “Jesus Cristo, eu estou aqui” de Roberto Carlos e “O homem de Nazaré”, de Antônio Marcos. Essas talvez sejam mais conhecidas e eventualmente são entoadas em igrejas porque o Cristo ali representado é o Cristo que não protesta. Mas há outras que merecem ser redescobertas, como a ainda a clássica “Cidadão”, a pérola “O último julgamento”, de Léo Canhoto e Robertinho ou a antiga “Procissão”, de Gilberto Gil. Além da temática cristológica, encontramos também a mariologia. Embora tenha no protestantismo clássico, onde há pouco espaço para a figura de Maria, confesso que foi através de uma canção antiga de Raul Seixas que minha sensibilidade foi despertada para apreciar a figura de Maria. Raul Seixas sempre foi muito mal visto por grupos religiosos católicos e protestantes. Contudo, é impressionante a quantidade de canções com temática religiosa em seus álbuns. Escolhi apenas uma, com temática mariológica. Aliás, algum tempo atrás fui ao show de um cover do Raul Seixas num bar underground. A pista de dança estava lotada por adolescentes e jovens, que ainda engatinhavam quando o cantor faleceu. Todos dançavam com muito vigor. Porém, no momento em que foi tocada “Ave Maria da rua”, percebi em algumas pessoas manifestações quase extáticas de devoção. A canção foi entoada por todos os presentes com um misto de reverência e não foram poucos os que levantavam as mãos para o céu, talvez porque o próprio andamento crescente da melodia que começa apenas com o som do piano e a cada estrofe recebe novos instrumentos e coral sugere um clima de progressiva exaltação. Eis a letra:

AVE MARIA DA RUA (Raul Seixas/Paulo Coelho)

No lixo dos quintais, na mesa do café
No amor dos carnavais, na mão, no pé
Tu estás, tu estás, no tapa e no perdão
No ódio e na oração

Teu nome é Iemanjá, que é Virgem Maria
É Glória e é Cecília, na noite fria
Minha mãe, minha filha, Tu és qualquer mulher,
Mulher em qualquer dia

Bastou o teu olhar pra me calar a voz
De onde está você rogai por nós
Minha mãe, minha mãe,
Me ensina a segurar a barra de te amar

Não estou cantando só, cantamos todos nós
Mas cada um nasceu com a sua voz
Pra dizer, pra falar, de forma diferente
O que todo mundo sente

Segure a minha mão quando ela fraquejar
E não deixe a solidão me assustar
Minha mãe, nossa mãe,
E mata a minha fome nas letras do teu nome
(nas glórias do teu nome)

Há na MPB também canções que resvalam na escatologia, como “Um índio”, de Caetano Veloso ou a pouco conhecida “Do terceiro milênio para a frente”, de Zé Ramalho:

DO TERCEIRO MILÊNIO PARA A FRENTE (Zé Ramalho)

Quando o último adeus desse milênio
Despedir-se de toda a humanidade
Descerá uma grande novidade
Entre átomos, ions e hidrogênio
Nascerá desse todo um grande gênio
Com enorme cultura diferente
Ensinando pra todos claramente
O porquê de uma causa ter efeito
Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente

Podem crer que daqui a uns cem anos
Automóveis não queimam gasolina
Não há mais reatores nem turbinas
Provocando ruídos desumanos
Nesse tempo os norte-americanos
É que pedirão dinheiro para a gente
Nós faremos com eles prontamente
Tudo quanto conosco eles tem feito
Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente

Em dois mil e quinhentos, mais ou menos
Há mudança geral em toda parte
Os humanos escrevem para marte
Pegam táxi aéreo para Vênus
Já os grandes não zombam dos pequenos
Porque o mundo só terá um presidente
Que vai unir ocidente e oriente
Sem senado, sem câmara, sem prefeito

Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente

Algum tempo atrás comecei a pesquisar o diabo na Música Popular Brasileira. Os resultados parciais podem ser encontrados em meu artigo “Imagens do diabo na MPB” e exemplifica também as possibilidades abertas pela abordagem referencial que considera a temática explícita e imediata das canções.

5. Para além da abordagem referencial

É certo que a estética de Tillich recebeu posteriormente algumas avaliações críticas que merecem destaque. Por exemplo, ele privilegiava as manifestações artísticas mais relacionadas à elite e menos as nascidas ou reproduzidas em ambientes populares. Nesse sentido, é grande sua proximidade com Adorno. Outras críticas à sua concepção estética referem-se ao fato de ele ter permanecido prisioneiro de uma estética romântica e funcionalista, não acompanhando os avanços da crítica de arte contemporânea que se propõe a avaliar a obra de arte por si mesma, pelo que ela é em si e não pelo que ela supostamente teria a expressar.

Outra crítica relacionada a essa, mas talvez ainda mais dura seja a de que Tillich servia-se da realidade artística para justificar seu sistema teológico e filosófico. Trabalhando com categorias ontológicas, Tillich teria tentado – em vão, segundo alguns – elaborar uma síntese entre filosofia e teologia fadada ao fracasso. Conseqüentemente, o que importaria para Tillich seria adequar a estética a seu projeto de síntese entre cultura e religião. Tillich apreciaria as obras de arte, então, não pela qualidade de sua estrutura, mas pelo poder de veicular a mensagem do Novo Ser. Naturalmente, esse é um risco muito grande às interpretações teológicas de obras de arte. Creio que aqui reside o desafio para nossa superação de Tillich. Precisamos encontrar nova maneira de falar das canções e das poesias evitando interpretações unívocas, pois a obra de arte é sempre uma obra aberta a múltiplas interpretações. Talvez Mário Quintana esteja correto quando alertava que devemos tomar cuidado ao interpretar poesias, porque a poesia “sempre diz outra coisa” e as metáforas nem sempre requerem explicações, mas solicitam apreciação. Uma canção de Gilberto Gil talvez possa nos ajudar a considerar isso:

METÁFORA (Gilberto Gil)

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz “lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz “meta”
Pode estar querendo dizer o incabível

Por isso não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo e nada cabem
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber o incabível

Deixe a lata do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa

Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

Quando elaborou o projeto de Teologia da Cultura em sua fase de docência na Alemanha, Tillich parecia muito otimista quanto à possibilidade de a arte oferecer respostas às perguntas levantadas pela situação cultural. Posteriormente, nos Estados Unidos, esse otimismo diminuiu, talvez devido à segunda guerra mundial e a outros fatores. A arte continuava a ter poder revelatório, mas a tendência é identificar nas manifestações culturais apenas um questionamento sobre os limites da experiência humana, mas incapaz de ser respondido em si mesmo sem o auxílio dos símbolos da tradição cristã. O tom é outro e transparece nele certo desapontamento e melancolia. A cultura ainda é capaz de levantar questões significativas, mas incapaz de respondê-las a partir de seus próprios recursos ou fontes. Tal cautela, porém, não afeta sua crença de que a substância espiritual reside nas profundezas da sociedade e naturalmente, sempre havia a possibilidade de uma obra de arte veicular com expressividade os símbolos da tradição cristã.

6. Momentos de beleza

Talvez uma possibilidade de ir além de Tillich esteja em um de seus próprios escritos. Trata-se do pequeno artigo “Um momento de beleza”, escrito em 1955, no qual Tillich recorda o choque revelador com uma das Madonnas de Botticelli. Segundo ele, aquele foi um momento de êxtase que o transportou espiritualmente a uma esfera de sentido e criatividade e em que teve a oportunidade de contemplar na beleza da pintura a “Beleza-em-si” (Beauty itself). Ele diz ter ficado paralisado, impressionado por perceber que algo do fundamento divino de todas as coisas lhe fora revelado. Afirma que tal experiência lhe devolveu a alegria da vida e conclui: “Aquele momento afetou toda minha vida, deu-me as chaves para a interpretação da existência humana, trouxe vitalidade e verdade espiritual. Eu o comparo com o que é usualmente chamado de revelação na linguagem religiosa”.

Importante aqui é destacar dois substantivos contidos no título do seu artigo-depoimento. O primeiro é “momento”, e o segundo, “beleza”. Devido às circunstâncias pessoais (retorno da guerra onde vivera experiências trágicas de convívio com a morte, fim do primeiro casamento, desintegração pessoal e social e conseqüente ausência de esperanças), Tillich encontrava-se bastante fragilizado. Esse era seu “momento” de vida. É natural que em tais circunstâncias, qualquer pessoa busque uma “resposta”, uma abertura de fresta entre as nebulosas e sombrias cortinas nos quais se sente encerrado. O encontro com a Madonna de Botticelli lhe proporcionou algo até então não experimentado – exatamente “um momento de beleza”, de transfiguração em meio à feiúra das tragédias pessoais e sociais com as quais convivia. De fato, aquele “momento” foi decisivo, mesmo que futuramente a situação política e social tenha piorado com a ascensão do nazismo. Tillich conviverá, então, com a “lembrança” do êxtase e talvez até mesmo pretendesse armar sua tenda particular diante daquela transfiguração, tal como fizeram os discípulos na conhecida narrativa dos evangelhos. Não sendo isso possível, ele tentará perpetuar o “momento” através de categorias filosóficas e teológicas, elaborando um quadro de pensamento no qual o “momento” poderia ser resgatado em outras ocasiões. Trata-se de tentação comum á experiência humana. Dificilmente nos contentamos em desfrutar o “momento” de um concerto ou a contemplação de um quadro. Nossa tendência é procurarmos o CD para ouvirmos o concerto em casa ou comprarmos a reprodução desauratizada e passamos a viver a lembrança do “momento” que passou. Raramente a “beleza” experimentada naquele “momento” inicial acompanhará o CD ou a reprodução. Mas tais objetos, ao menos servirão para amenizar a saudade e provocar novas emoções.

“Beleza” é um conceito filosófico perigoso. A estética criou historicamente padrões para avaliar objetivamente uma obra de arte medindo e definindo suas proporções, equilíbrio, harmonia” (nas formas ou nos sons), segundo os quais estabelece gradientes para classificar o belo e o não-belo. Herbert Read critica as utilizações desse conceito e afirma que o mesmo só terá sentido se a ele for acrescentado o de “vitalidade”, idéia semelhante ao conceito de “expressividade” em Tillich. Read dirá que “a singularidade é reduzida ao momento em que esses fatores (beleza e vitalidade) são reunidos e projetados da consciência de uma pessoa. É o acontecimento que é excepcional: a maneira, não a matéria”. Se Tillich buscava “respostas” ao retornar do front, de certo modo ele encontrou em um “momento de beleza”, ainda que tal resposta tenha sido fugidia, passageira e tênue. Sua tentação foi perpetuar seu particular “momento de beleza” generalizando-o e tentando explicá-lo a partir de sua formação teológica e filosófica.

A arte, de fato, não oferece “respostas” permanentes. Ela nos provoca, mexe com nossas emoções, nos invade, nos deixa boquiabertos, atinge nossas emoções e nos abala. As pessoas têm formação mais técnica nos detalhes e categorias estruturais da estética desfrutam a arte a seu modo. O músico profissional é capaz de identificar pequenas desafinações nos acordes iniciais da “Valsa das flores” ou lamentar a desproporcionalidade de formas pintadas ou esculpidas que, num primeiro momento, não são visíveis ou audíveis ao expectador comum. Mas o “momento de beleza” está ali, fugidio, incomensurável, incapaz de ser aprisionado, mas sempre oferecido como dádiva a ser desfrutado.

A a Teologia da Cultura é um vasto campo ainda a ser desbravado porque o dinamismo da produção cultural humana é muito rápido. Naturalmente não estou falando aqui dos modismos da indústria cultural, mas das muitas expressões revelatórias que nos são veiculadas através de poetas e compositores que, com seu sacerdócio e seus dons, são capazes de revelar a pequenez e fragilidade humanas e nos motivar a enfrentar a transitoriedade e a prestar constas ao transcendente. A atualidade do pensamento de Tillich nessa área talvez esteja exatamente no desafio que ele nos faz e nas pistas que nos oferece. Termino com uma canção para nossa apreciação, gravada por Milton Nascimento durante o show “Tambores de Minas”. Quando ouvi essa canção pela primeira vez também confrontado com “um momento de beleza”. Ela estava ali. Talvez ela não volte, ou retorne de outras formas. Mas sua lembrança se impregnou em mim como “grata memória”:

GUARDANAPOS DE PAPEL (Leo Masliah)

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas ,trombetas
E sempre aparecem quando menos aguardados, guardados
Guardados entre livros e sapatos, em baús empoeirados

Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pare, seus pares
E convivem com fantasmas multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras e te pedem que não chores.

Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas, feridas
Mas resistem com palavras confundidas, fundidas
Fundidas ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas

Não desejam glórias nem medalhas, medalhas, medalhas
Se contentam com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos

Fazem quatrocentos mil projetos, projetos, projetos
Que jamais são alcançados, cansados, cansados
Nada disso importa enquanto eles escrevem, escrevem, escrevem
O que sabem que não sabem e o que dizem que não devem

Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas e outras, e outras
Cujo brilho sem barulho veste suas caudas tortas

Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retorcendo-se confusas, confusas, confusas
Em delgados guardanapos feito moscas inconclusas

Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar do que eles juram que não viram

Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro, inteiro, inteiro
Fossem vendo pra depois voltar pro Rio de Janeiro

* Por Carlos Eduardo B. Calvani rev. do Centro de Estudos Anglicanos, sediado em Londrina, Paraná.

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