quinta-feira, 30 de julho de 2009
OU É O EVANGELHO OU É DOENÇA!
O cristianismo está repleto daqueles que conheceram Jesus segundo a carne
Como podemos conhecer Jesus nos evangelhos e, por tal via, confessarmos que O conhecemos pela fé, e, ainda assim, nos deixarmos levar por tantas outras coisas chamadas espirituais que nada têm a ver com Jesus ou com o espírito do Evangelho?
Paulo falou de conhecer Jesus no espírito e conhecer Jesus segundo a carne.
Ora, conhecer Jesus segundo a carne é conhecer apenas o Jesus-Informação-Histórico-Religiosa. Nos dias de Paulo, essa denúncia também incidia sobre aqueles que se diziam discípulos de Jesus mas viviam na Lei, e não na Graça.
Conquanto Jesus seja também uma informação histórica — afinal Ele existiu, e nós não estávamos lá quando isso aconteceu, razão pela qual dependemos completamente das descrições que os evangelhos fazem de Jesus a fim de melhor discernir Seu espírito —, no entanto, o discernimento de Quem Ele era só acontece como revelação de Deus no coração. Do contrário, a pessoa pode até confessar a Jesus como Senhor, mas fazer isso como crença religiosa, e não como o fruto de uma relação de Conhecimento de Jesus.
A História do Cristianismo está marcada por aqueles que conheceram Jesus segundo a carne (a maioria quase absoluta) e aqueles que O conheceram segundo o espírito. Aliás, se fôssemos medir qual dos inimigos do Evangelho mais demandaram energia de Jesus e de Paulo, veríamos que o diabo, o mundo, o império romano e todas as Potestades não estiveram na “pauta dos incômodos” de suas vidas tanto quanto os que conheciam Jesus apenas segundo a carne.
Jesus “gastou mais energia” nos encontros com escribas, fariseus, saduceus e autoridades do Templo do que com qualquer outra forma de oposição. Seus suspiros de angústia sempre foram provocados por estes.
Já Paulo teve nos “falsos irmãos” e nos “judeus zelosos da lei” seus maiores inimigos. É como combate às heresias que pretendiam relativizar a Graça de Deus que o tema central de suas cartas acontece, ora combatendo o ascetismo religioso de influência grega, que buscava purificação pela abstinência de quase tudo ou pelo conhecimento de supostos mistérios, ora enfrentando as mesmas relativizações da Graça que eram feitas pelo outro pólo, o pólo da Lei, que, se fosse crida como estando ainda vigente, desconstruiria o significado da Cruz de Cristo. A respeito disso Paulo diz que a Lei morreu com Ele na Cruz para que, agora, libertos de nosso antigo e penoso casamento com a Lei, pudéssemos ficar livres para nos casar de novo, agora com a Graça de Deus em Cristo.
Desse modo, conhecer Jesus apenas segundo a carne faz de muita gente vampiros sugadores da energia de almas boas. Sim, porque os que mais sugaram o sangue de Paulo foram estes.
É esse conhecimento de Jesus segundo a carne, apenas como informação histórica e dogmática, o que mais drena a energia espiritual de quem deveria estar pregando o Reino de Deus, e não sendo sugado pelas sanguessugas da religião. Eu ousaria dizer que talvez 95 por cento do que suga a nossa energia na “causa cristã” nada tem a ver com Jesus segundo o espírito, mas apenas com o Jesus segundo a carne.
Ora, isso vai das formalidades e das politicagens dos concílios e das convenções denominacionais e ministeriais até as mais cretinas formas de perversidade praticadas em nome de Jesus, feitas de fofocas, intrigas, intervenções, tiranias, perseguições neuróticas e invenções mirabolantes que tiram a simplicidade do Evangelho, fazendo dele um feioso produto da religião.
Conhecer Jesus apenas segundo a carne faz mais mal do que não conhecer Jesus de modo algum. Isso porque nenhuma perversidade é mais chocante do que aquela que se faz em nome de Jesus ou que se torna farisaísmo legalista feito em nome dEle, pois isso introjeta o oposto na alma: o ser-diabo, como Judas, que O conheceu segundo a carne apenas.
Paulo um dia conheceu Jesus como informação histórica apenas, e dedicou-se a acabar com Ele na Terra. Resfolegava ódio. Ficou perverso. Torturou. Fez muitos sentirem tanto medo e dor que negaram a própria fé.
Paulo foi membro do “DOI COD” dos que apenas conhecem Jesus “de fora”. É que qualquer associação com Jesus que não seja no espírito, como conhecimento relacional, mediante apenas a fé, não tem o poder de fazer bem, embora tenha o poder de fazer o pior mal, que é o Mal de Lúcifer: aquele que vira diabo na presença-não-amada-de-Deus.
Sim, eu lhes digo, amigos, sem medo de errar: é melhor que uma pessoa não conheça nada de Jesus e viva solitária e ignorante na beira de um barranco de um rio da África ou do Amazonas do que dizer que conhece Jesus quando apenas conhece a Sua suposta representação: a igreja e seus muitos e muitos ídolos, lugar onde muitas vezes reina a soberba, que foi a condenação do diabo.
Sim! É melhor nada saber do que pensar que sabe e, naquele Dia, ouvir o Senhor dizer: “Eu nunca vos conheci”.
Conhecer Jesus segundo o espírito é conhecer o espírito do Evangelho, e, no poder e na liberdade no Espírito Santo, experimentar o Evangelho como supremo benefício para a vida.
Conhecer Jesus segundo a carne é como olhar para um Objeto do lado de fora, observando-o. Já conhecer Jesus segundo o espírito é como ver “de dentro” da Pessoa dEle.
Sim, você passa a ver tudo “de dentro”, não mais “de fora”. E isso só acontece como iluminação dos olhos do coração, os quais só são abertos pela manifestação da Graça, abrindo o entendimento. Do contrário, nem todos os seminários de teologia podem abrir espiritualmente o entendimento de ninguém.
Enquanto Deus é visto “de fora” e não “de dentro” dEle, saiba: a pessoa não conheceu ainda o que é "estar em Cristo”.
Ora, “estar em Cristo” é de fato estar em Cristo. Daí em diante se vive e se vê “de dentro”, pois, pela mesma razão, se pode também dizer: “Cristo vive em mim!”
NEle,
Caio Fábio
www.caiofabio.com
terça-feira, 14 de julho de 2009
Sadhu Sundar Sing, o apóstolo dos pés sangrentos
Sundar Sing era filho de pessoa rica e proeminente da Índia, onde imperava e ainda impera uma discriminação e racismo brutais, estando o país dividido em castas que praticamente não se comunicam entre si. Conheceu Jesus através da leitura de um Novo Testamento. Essa guinada em sua vida custou-lhe o ódio e a discriminação por parte de todos – inclusive da família, levando-o a viver nos campos e matas, em extrema penúria e também, muitas vezes, em grandes cidades do mundo fazendo conferências.
Sua alegria interior compensava tudo que tinha perdido. Ele próprio dizia que queria viver, tanto quanto possível, uma vida semelhante à de Jesus.
O milagre era uma constante em sua vida. Imagine alguém que não tem onde dormir, nem o que comer ou vestir, andando por selvas, montes, desertos, montanhas geladas e que pudesse sobreviver se não fosse pelo milagre. Imagine, também, as perseguições, prisões, espancamentos de alguém que, qual Daniel, não contasse com um Deus para livrá-lo.
Pois bem, assim era a vida do Sadhu (termo indiano que significa santo ou separado) Sundar Sing: entre visões da glória, transportes, meditações profundas, estados de êxtase.
Certa feita, foi atirado pelos seus algozes dentro de um poço cheio de pessoas condenadas – mortas ou moribundas. Um poço de onde ninguém sairia. A despedida da vida. Quando chegou ao fundo, sentiu o contato morno de algo que nada mais era do que carne humana fétida, em decomposição. Logo em seguida fecharam a chave a boca do poço.
“Não sabia que três dias se tinham passado. Inerte, sentado entre os ossos e os cadáveres, aguardava a morte, quando a boca do poço se abriu. Um vulto irreconhecível surgiu, negro contra o céu da noite. A voz, ampliada, era como o trovão. Ordenava-lhe que agarrasse a corda. E pouco depois, tateando fracamente, encontrou-a. Tinha um nó na extremidade. Firmou ali o pé e segurou-a como pôde. Sentiu que era erguido. Seu corpo oscilou pesadamente de uma parede à outra, até que atingiu a superfície. Fortes mãos o agarraram e o colocaram em terra. O ar fresco invadiu-lhe os pulmões como a água da represa invade o vale, os diques. Tossindo, atordoado, ouviu como em sonhos o ranger da tampa, o som da chave na fechadura. Olhou em torno para conhecer o seu amigo desconhecido, mas viu que estava só na escuridão noturna. Caiu de joelhos e deu graças a Deus. Quem o visse dormindo entre o bulício da faina diária que começava não imaginaria que era o mesmo que estivera no fundo do poço por três dias”.
No final de sua vida tentou várias vezes a travessia do Himalaia, rumo ao Tibete, onde pretendia pregar o evangelho. Da última vez, na primavera, não se conteve. Pretendia atingir o seu destino pela 'Estrada do Peregrino'. Contra tudo e contra todos, foi e desapareceu — por mais que o procurassem, sumiu sem deixar vestígio algum.
O importante é salientar o papel que Jesus representa e pode representar nas vidas daqueles que buscam algo surpreendente, superior e eterno e que não têm medo de confiar n’Aquele que é poderoso para resolver.
sexta-feira, 10 de julho de 2009
Momentos de beleza – Teologia e MPB a partir de Tillich
Por Carlos Eduardo B. Calvani
Resumo
O presente artigo destaca a importância dos pressupostos abertos por Tillich com sua proposta de uma Teologia da Cultura, particularmente no tocante á abordagem de obras de arte. O texto apresenta brevemente os princípios metodológicos de Tillich, destacando sua abertura ao mistério. Também aponta as possibilidades abertas pela abordagem referencial bem como seus limites, buscando pistas para abordagens não-referenciais das obras de arte, a partir da única “resposta” que as mesmas podem nos oferecer: “momentos de beleza”.
Introdução
Recentemente li dois trabalhos sobre Teologia e música. Em 2001, a revista Concilium publicou um artigo de Ola Sigurdson intitulado “Cantos do desejo: sobre música pop e a questão de Deus”. A autora, professora da Universidade de Lund, na Suécia, abordar música pop a partir da célebre frase de Agostinho: “tu nos criaste para Ti, e nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em Ti”. A música pop, para ela, expressaria o desejo, o anseio, uma espécie de insatisfação da pessoa em relação à vida e a busca por Deus como fonte capaz de saciar a infinita fome de realização plena. Em seu artigo, Sigurdson avalia letras de canções de Madonna, Beatles, Bruce Springsten, U2 e Bon Jovi. Em 2000 foi publicado um interessante livro de Jeremy Begbie, Theology, Music and Time. O autor é músico profissional, e tem atuado em concertos como pianista, oboísta e regente. Além disso, é professor de Teologia sistemática e Vice-Reitor da Faculdade de Teologia, Ridley Hall da Universidade de Cambridge. São quase 400 páginas procurando identificar e interpretar temas teológicos na obra de Beethoven, Pierre Boulez, John Cage. Stravinsky e, naturalmente, Mozart. Begbie deixa de lado a música marcadamente associada com palavras, textos, narrativas ou liturgia e trata mais da música que possa colocar em relevo as propriedades peculiares dos sons musicais que ele deseja salientar e o modo distinto como os sons operam. Dentro disso, a área de concentração do autor é a temporalidade. “A música é uma arte temporal”. “A música nos oferece uma forma particular de participação na temporalidade do mundo e desse modo, ela tem a capacidade de evocar alguma coisa da natureza dessa temporalidade e nosso envolvimento na mesma”.
Em ambos os textos, não há nenhuma menção a Paul Tillich. Isso talvez sinalize para algo significativo: se Tillich de certo modo inaugurou a abordagem que veio a ser conhecida como “Teologia da Cultura”, hoje é necessário ir além dos postulados por ele erigidos. À luz dessas considerações, pretendo esboçar algumas idéias básicas do que considero ainda relevante na obra de Tillich, bem como apresentar minhas atuais suspeitas de suas limitações. Desenvolverei meu tema ilustrando com algumas canções da MPB:
1. Teologia da Cultura
Dentre as muitas contribuições de Tillich para a teologia contemporânea, acentuo seu reconhecimento da pertinência mútua entre religião e cultura. Desde o final do século 19 com o positivismo e Marx, as experiências religiosas sofriam ataques de vários flancos. Isso se acentuou no século XX com Freud e mesmo em correntes teológicas como a neo-ortodoxia de Barth. Tillich não apenas recuperou a dimensão positiva da vivência religiosa, como também ousou afirmar que a religião permeia todas as manifestações culturais. A religião é reconhecida por ele como elemento fundamental (substância) de toda cultura, e a cultura, por sua vez, seria o elemento formal da dimensão religiosa. Isso estava na contramão das tendências que preconizavam o fim da religião ou sua superação nas sociedades industriais secularizadas. Desse modo, Tillich ainda na sua fase alemã, já afirmava que toda grande obra de arte, toda filosofia importante, toda manifestação artística, é essencialmente religiosa porque manifesta a busca pelo absoluto.
A conseqüência dessa visão representou naquela época a “descoberta”, por assim dizer, de um novo campo a ser explorado pela teologia. A isso ele chamou “teologia da cultura” em contraste com a “teologia da igreja”. No início do século passado, Tillich já distinguia entre essas duas possibilidades do labor teológico. A “teologia da igreja” é aquela na qual todos nós fomos treinados. Visa a defesa e expansão da instituição religiosa e suas preocupações giram em torno de dogmas, doutrinas e práticas pastorais. O teólogo da igreja, devido á sua necessidade de lidar com assuntos internos da vida eclesiástica, será sempre mais conservador e seletivo. Tillich, porém, dizia que o teólogo da cultura, em contrapartida, não está preso às preocupações institucionais. É um observador atento do movimento vivo da cultura, e se mantém aberto aos múltiplos sinais da revelação. Se hoje isso pode parecer repetitivo, na época de Tillich tratava-se de um postulado revolucionário, pois afirmava que a revelação não está somente onde a igreja diz estar, mas mais além, nos lugares onde a igreja pouco se interessa a ir, nos cenários e figuras que pouco se interessa em contemplar e nos sons que pouco se interessa em ouvir. Desse modo, a teologia era libertada da tutela eclesiástica e do conseqüente isolamento em que se encontrava, em parte devido ás suas próprias restrições temáticas.
2. Metalogia
Na prática, Tillich incentivava os teólogos de sua época a ficarem atentos às perguntas levantadas pelo contexto em que viviam e que se manifestam através das artes. Essa proposta exigia um novo método de abordagem dos problemas e Tillich o denominou de “metalogia”, ou “método metalógico”. Em 1922 Tillich já anunciava que essa proposta metodológica seria capaz de garantir o aspecto objetivo, racional e crítico de toda pesquisa, mas também superá-lo ou complementá-lo. Servindo-se dos estudos de Rudolff Otto e da incipiente fenomenologia, Tillich propunha sintetizar a metodologia crítica com a intuitiva, reunindo-as num método que fosse, simultaneamente, crítico e intuitivo. O método metalógico se funda no método crítico dialético. Mas o transcende através da intuição das essências que não se dirige para as coisas particulares ou suas qualidades, nem se atém á forma individual. Antes, percebe as tensões e polaridades. Segundo Tillich, “o método crítico, bem como o intuitivo, são incapazes de resolver isoladamente o problema central da filosofia da religião e, por conseguinte, também o da filosofia da cultura – a saber, a questão do sentido último da realidade do real”. A complementaridade das duas perspectivas se faz necessária, porque o método crítico não é capaz de atingir a essência (Was) das coisas. O intuitivo, por sua vez, não consegue responder à questão da existência (daB) das coisas tal como aparecem na história”. A partir daí, a construção de um método crítico-intuitivo se impõe como exigência. O aspecto crítico consideraria as formas dadas na cultura, enquanto o intuitivo perguntaria por seu significado espiritual, o conteúdo substancial de cada forma.
A palavra “metalogia” guarda relações semânticas com “metafísica”. Assim como a metafísica pretendia ir além (meta) do físico, do sensorial, a metalogia que ir além (meta) da lógica. Não se trata de negar a lógica ou suprimi-la, mas de transcendê-la. E Tillich frisava que o pensamento lógico e racional é suficiente para dar conta apenas das conotações da forma, mas não é capaz de participar plenamente no significado do conteúdo, uma vez que esse tem aspectos “irracionais” ou “ilógicos”. Segundo ele, “a essência do método metalógico é projetar o elemento irracional dessas funções (intuição e fé) no interior da própria lógica, de modo que os conceitos “pensamento” e “ser” recebam um tom metalógico: o pensamento se identifica com a forma e o ser com o conteúdo. O pensamento expressa o elemento racional, estruturante e formal, enquanto o ser expressa o elemento irracional, vital e infinito, que constitui a profundidade e a força criativa de toda realidade.
Na metalogia, a intuição recebe peso considerável. A intuição não se dirige apenas às coisas particulares ou ás suas qualidades, mas ás tensões e polaridades que constituem o elemento verdadeiramente essencial do objeto estudado. Segundo Tillich, “a meta da metalógica é a intuição da dinâmica interna na estrutura da realidade significativa”. Desse modo Tillich rejeita o agnosticismo ontológico de Kant. A possibilidade de uma teologia da cultura repousa sobre a convicção fundamental de que o pensamento é capaz de ultrapassar as formas lógicas do sentido e tocar a profundidade infinita do conteúdo religioso do ser.
A perspectiva aberta por Tillich resultou em originais, criativas e ousadas abordagens teológicas de obras de arte, algo que Tillich começa a desenvolver já na Alemanha e continua nos Estados Unidos. Infelizmente, a maioria das pessoas conhece apenas o Tillich da Teologia Sistemática. Ali ele é “teólogo da Igreja”. Mas é impressionante a quantidade de textos pouco conhecidos de Tillich nos quais ele avalia obras de arte, sobretudo pinturas, mas também literatura e, em menor escala, a música. Com a teologia da cultura, Tillich buscou compreender melhor suas próprias experiências, justificá-las teologicamente e fazer com que as experiências estéticas de outras pessoas pudessem também ser qualificadas e reconhecidas como religiosas, na medida em que delas irrompe uma percepção do poder de ser, um abalo existencial que provoca sensíveis mudanças no sujeito que as vivencia.
Mas o que vem a ser a experiência estética para ele? Sempre que Tillich relata o que viveu diante do quadro de Botticelli, está presente a idéia de “choque”. Experiência estética é o choque provocada por uma obra de arte no sujeito que se depara sensorialmente com ela. Quando Tillich fala em experiência, tem sempre em mente um elemento de abalo, de choque recebido “de fora” do sujeito, e essa experiência, para ele, corresponde à idéia de revelação. A experiência estética se caracteriza por ser intuitiva e não conceitual. Os sentidos são o primeiro canal de recepção. Só depois de passar pela via sensorial é que o sujeito submete a experiência recebida às categorias conceituais e classifica a obra de acordo com seus padrões de beleza. Em Filosofia da Religião, Tillich diz que em cada experiência estética o sentido incondicional “vibra” e que todo sentimento estético é um sentimento transcendente.
3. Abertura ao mistério
Esse é outro ponto que julgo muito valioso na obra de Tillich. Ao contrário do que muitos pensam, não o considero um teólogo racionalista. Ele era profundamente aberto aos mistérios que povoam o mundo e que muitos teólogos tentam dessacralizar. Tillich viveu intensamente essa tensão entre mistério e as tentativas de explicar o mistério. Mas, pelo pouco que conheço de sua obra, nunca cedeu à tentação de racionalizar o mistério, pois esse sempre reaparece, como diz Gilberto Gil: “mistério sempre há de pintar por aí”:
Uma canção pouco conhecida de Gilberto Gil talvez possa ilustrar essa idéia. Ela fala dos milagres que ocorrem num santuário de peregrinação do Nordeste. Eu quase ia escrevendo “os milagres que supostamente ocorrem...” Lembrei-me, porém, que a Teologia lida sempre com o mistério e qualquer tentativa de racionalizar o mistério é uma afronta em si à sua sacralidade. Como ocorre em toda religiosidade popular, coisas fabulosas e misteriosas são narradas sem que recebam explicações científicas plausíveis. Por isso, acabam permanecendo no nível do mito, que Tillich sempre preservou e valorizou:
XOTE (Gilberto Gil/Rodolfo Stroeter)
Foi quando a chuva fez a curva no horizonte
Deixando o monte da viúva sem molhar
Que eu me dei conta que a santa lá da fonte
Ficou três dias sem beata pra rezar
Ficou três dias sem beata pra cantar
A cantoria que há dez anos todo dia vem cantar
As rezadeiras todas filhas de Maria
Muitas vindas da Bahia com promessas pra pagar
Rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas elas com um bocado de promessas pra pagar
Aquela fonte permanece desaguando
De um milagre que há dez anos acontece no lugar
Ela não brota de uma grota, de uma pedra
Nunca medra como qualquer fonte costuma medrar
Bem na catinga onde quase nunca pinga
Nessa fonte sempre chove todo dia sem falhar
Esse fenômeno de fato inusitado
Parece que é provocado pela firme devoção
Das rezadeiras que vêm sempre em romaria
De Alagoas, Pernambuco, Paraíba e região
Mas todos sabem, se a oração não principia
Com uma moça da Bahia
Então chover não chove não
Algumas moças rezadeiras que vieram
De outros lugares sem ligar pra tradição
Cantaram tudo, tudo tudo que puderam
Mas nos três dias não choveu no lajedão
Nesses três dias sem as moças da Bahia
Pra cantar a cantoria todo mundo percebeu
Não adianta, pirulito é pirulito, piriquito é piriquito
Mito é mito e Deus é Deus
4. Tema e Estilo – Possibilidades e limites da abordagem referencial
Pretendo sugerir a seguir algumas possibilidades de aproximação entre a Teologia da Cultura de Tillich e canções da MPB além das já descritas em meu livro “Teologia e MPB”.
Em Existentialist Aspects of Modern Art, Tillich elabora quatro categorias para falar dos níveis de relação entre arte e religião. Os conceitos-chave são “tema” e “estilo”. “Tema” tem a ver com os referenciais explícitos de uma obra de arte. Esses, em geral já são dados pelo próprio artista ao batizar sua criação. A partir daí, a pessoa que irá apreciar a obra de arte (seja um quadro, uma escultura ou música), já se aproxima da obra com um certo condicionamento. “A paixão de são Mateus” de Bach traz temática explicitamente cristã e é impossível fugir desse referencial óbvio. Do mesmo modo, “A Sagração da Primavera” de Stravinsky é subdividida em partes cujos títulos são extraídos das antigas religiões pré-cristãs da Europa. O referencial temático pode, em princípio, criar simpatia ou antipatia no ouvinte antes mesmo de ouvir a música. Em todo caso, é impossível fingir que o tema não existe. Ele está lá – dado pelo artista.
Mas para Tillich, se o referencial temático é importante, ele não é determinante para qualificar a importância religiosa da obra de arte. Para tanto, o que mais pesa é o “estilo”, ou seja, o poder que a arte tem de expressar com vitalidade, coragem e originalidade, o tema proposto. Há aqui nítida herança da apreciação de Tillich pelo expressionismo temperada por tons existencialistas. Não é, portanto, o tema que caracteriza uma arte como religiosa, mas sim o estilo e o conteúdo substancial “inconscientemente presente numa cultura, num grupo e num indivíduo, dando a paixão e o poder diretivo àquele que cria, bem como o significado e o poder de sentido a suas criações”. Desse modo, pode haver, para ele, obras com “tema religioso e estilo não-religioso” ou obras com “tema não-religioso e estilo religioso”. Estabelece-se assim, um gradiente segundo o qual as obras mais completas, por assim dizer, seriam as que manifestam conjuntamente “tema e estilo religiosos”.
A partir daí, Tillich considera “Guernica” de Picasso, uma obra de arte “tipicamente protestante”, não por seu tema, mas pelo seu estilo. O tema é o bombardeio do vilarejo de Guernica. Mas a originalidade da desintegração das formas nunca antes apresentadas determinaria, para Tillich, o “estilo religioso” de Guernica. Talvez Picasso nunca tenha pensado em produzir uma obra “protestante”. Mas isso pouco importa para Tillich, pois para ele, o poder religioso do protesto profético será sempre expressão do “princípio profético”. Nessa lógica, a canção “Burguesia” seria uma atualização brasileira do protesto próprio dos expressionistas alemães da década de 20. Seria uma obra com “tema não-religioso” e “estilo religioso”:
BURGUESIA (Cazuza/George Israel/Ezequiel Neves)
A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia não vai haver poesia
A burguesia não tem charme nem é discreta
Com suas perucas de cabelos de boneca
A burguesia quer ser sócia do Country
Quer ir a Nova York fazer compras
Pobre de mim que vim do seio da burguesia
Sou rico, mas não sou mesquinho,
Eu também cheiro mal, eu também cheiro mal...
A burguesia tá acabando com a Barra
Afundam barcos cheios de crianças
E dormem tranqüilos, e dormem tranqüilos
Os guardanapos estão sempre limpos
As empregadas uniformizadas
São caboclos querendo ser ingleses...
A burguesia não repara na dor da vendedora de chicletes
A burguesia só olha pra si, a burguesia só olha para si
A burguesia é a direita, é a guerra... (...)
No meu livro sobre Teologia e MPB, defendo que a juventude brasileira não é irreligiosa como se pensa. Sentimentos de culpa e consciência das limitações estão muito presentes nas canções do rock brasileiro. Uma delas eu já utilizei em liturgias no momento da confissão de pecados. É uma canção que não apenas lamenta os pecados coletivos, mas se reconhece como participante desses pecados ao dizer no final: “somos iguais em desgraça”. Digno de nota aqui é a insistência na palavra “Coragem”, algo que Tillich muito enfatizou no livro “A Coragem de Ser”. Teríamos então uma canção com estilo e tema religiosos:
BLUES DA PIEDADE (Frejat/Cazuza)
Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não tem
Pra quem vê a luz, mas não ilumina suas mini-certezas
Vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia
Pra quem não sabe amar
Fica esperando alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada
Vamos pedir piedade, Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade, Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem
Quero cantar só pras pessoas fracas
Que estão no mundo e perderam a coragem
Quero cantar o blues com o pastor e o bumbo na praça
Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sobre a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade...
A coragem de afirmar a vida também é cantada pelo grupo Titãs em “O pulso ainda pulsa”, canção que encara com ousadia a tênue linha que separa vida e morte, insistindo em posicionar-se confiantemente e com coragem ao lado da primeira. A letra é recheada de substantivos que descrevem imensa gama de doenças que afetam o ser humano. Os autores põem em pé de igualdade como ameaças à qualidade de vida, tanto as doenças mais diretamente orgânicas como as manifestações inorgânicas (raiva, ciúmes, hipocrisia, culpa). O único verbo da canção (“pulsar”) está diretamente associado aos sinais de vida identificados quando se “toma o pulso” de alguém. Durante toda a canção ouve-se ao fundo o som ininterrupto de um aparelho médico. Embora não haja nenhum tema diretamente religioso, encontramos o enfrentamento corajoso da morte que nos ronda diariamente e a afirmação igualmente ousada da esperança de que as ameaças descritas não impeçam o pulso de continuar a pulsar. Essa canção se enquadraria na tipologia que Tillich denominou “Estilo religioso e tema não-religioso”.
O PULSO AINDA PULSA (Arnaldo Antunes/Titãs)
Peste bubônica, câncer, pneumonia,
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria,
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
E o pulso ainda pulsa...
Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia,
Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria,
Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania,
E o corpo ainda é pouco
Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia,
Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia,
Brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra, afasia,
E o pulso ainda pulsa
É possível identificar na cultura brasileira diversas canções relacionadas diretamente a temáticas religiosas. Vasto campo está na cristologia, desde as conhecidíssimas “Jesus Cristo, eu estou aqui” de Roberto Carlos e “O homem de Nazaré”, de Antônio Marcos. Essas talvez sejam mais conhecidas e eventualmente são entoadas em igrejas porque o Cristo ali representado é o Cristo que não protesta. Mas há outras que merecem ser redescobertas, como a ainda a clássica “Cidadão”, a pérola “O último julgamento”, de Léo Canhoto e Robertinho ou a antiga “Procissão”, de Gilberto Gil. Além da temática cristológica, encontramos também a mariologia. Embora tenha no protestantismo clássico, onde há pouco espaço para a figura de Maria, confesso que foi através de uma canção antiga de Raul Seixas que minha sensibilidade foi despertada para apreciar a figura de Maria. Raul Seixas sempre foi muito mal visto por grupos religiosos católicos e protestantes. Contudo, é impressionante a quantidade de canções com temática religiosa em seus álbuns. Escolhi apenas uma, com temática mariológica. Aliás, algum tempo atrás fui ao show de um cover do Raul Seixas num bar underground. A pista de dança estava lotada por adolescentes e jovens, que ainda engatinhavam quando o cantor faleceu. Todos dançavam com muito vigor. Porém, no momento em que foi tocada “Ave Maria da rua”, percebi em algumas pessoas manifestações quase extáticas de devoção. A canção foi entoada por todos os presentes com um misto de reverência e não foram poucos os que levantavam as mãos para o céu, talvez porque o próprio andamento crescente da melodia que começa apenas com o som do piano e a cada estrofe recebe novos instrumentos e coral sugere um clima de progressiva exaltação. Eis a letra:
AVE MARIA DA RUA (Raul Seixas/Paulo Coelho)
No lixo dos quintais, na mesa do café
No amor dos carnavais, na mão, no pé
Tu estás, tu estás, no tapa e no perdão
No ódio e na oração
Teu nome é Iemanjá, que é Virgem Maria
É Glória e é Cecília, na noite fria
Minha mãe, minha filha, Tu és qualquer mulher,
Mulher em qualquer dia
Bastou o teu olhar pra me calar a voz
De onde está você rogai por nós
Minha mãe, minha mãe,
Me ensina a segurar a barra de te amar
Não estou cantando só, cantamos todos nós
Mas cada um nasceu com a sua voz
Pra dizer, pra falar, de forma diferente
O que todo mundo sente
Segure a minha mão quando ela fraquejar
E não deixe a solidão me assustar
Minha mãe, nossa mãe,
E mata a minha fome nas letras do teu nome
(nas glórias do teu nome)
Há na MPB também canções que resvalam na escatologia, como “Um índio”, de Caetano Veloso ou a pouco conhecida “Do terceiro milênio para a frente”, de Zé Ramalho:
DO TERCEIRO MILÊNIO PARA A FRENTE (Zé Ramalho)
Quando o último adeus desse milênio
Despedir-se de toda a humanidade
Descerá uma grande novidade
Entre átomos, ions e hidrogênio
Nascerá desse todo um grande gênio
Com enorme cultura diferente
Ensinando pra todos claramente
O porquê de uma causa ter efeito
Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente
Podem crer que daqui a uns cem anos
Automóveis não queimam gasolina
Não há mais reatores nem turbinas
Provocando ruídos desumanos
Nesse tempo os norte-americanos
É que pedirão dinheiro para a gente
Nós faremos com eles prontamente
Tudo quanto conosco eles tem feito
Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente
Em dois mil e quinhentos, mais ou menos
Há mudança geral em toda parte
Os humanos escrevem para marte
Pegam táxi aéreo para Vênus
Já os grandes não zombam dos pequenos
Porque o mundo só terá um presidente
Que vai unir ocidente e oriente
Sem senado, sem câmara, sem prefeito
Estará nosso mundo desse jeito
Do terceiro milênio para a frente
Algum tempo atrás comecei a pesquisar o diabo na Música Popular Brasileira. Os resultados parciais podem ser encontrados em meu artigo “Imagens do diabo na MPB” e exemplifica também as possibilidades abertas pela abordagem referencial que considera a temática explícita e imediata das canções.
5. Para além da abordagem referencial
É certo que a estética de Tillich recebeu posteriormente algumas avaliações críticas que merecem destaque. Por exemplo, ele privilegiava as manifestações artísticas mais relacionadas à elite e menos as nascidas ou reproduzidas em ambientes populares. Nesse sentido, é grande sua proximidade com Adorno. Outras críticas à sua concepção estética referem-se ao fato de ele ter permanecido prisioneiro de uma estética romântica e funcionalista, não acompanhando os avanços da crítica de arte contemporânea que se propõe a avaliar a obra de arte por si mesma, pelo que ela é em si e não pelo que ela supostamente teria a expressar.
Outra crítica relacionada a essa, mas talvez ainda mais dura seja a de que Tillich servia-se da realidade artística para justificar seu sistema teológico e filosófico. Trabalhando com categorias ontológicas, Tillich teria tentado – em vão, segundo alguns – elaborar uma síntese entre filosofia e teologia fadada ao fracasso. Conseqüentemente, o que importaria para Tillich seria adequar a estética a seu projeto de síntese entre cultura e religião. Tillich apreciaria as obras de arte, então, não pela qualidade de sua estrutura, mas pelo poder de veicular a mensagem do Novo Ser. Naturalmente, esse é um risco muito grande às interpretações teológicas de obras de arte. Creio que aqui reside o desafio para nossa superação de Tillich. Precisamos encontrar nova maneira de falar das canções e das poesias evitando interpretações unívocas, pois a obra de arte é sempre uma obra aberta a múltiplas interpretações. Talvez Mário Quintana esteja correto quando alertava que devemos tomar cuidado ao interpretar poesias, porque a poesia “sempre diz outra coisa” e as metáforas nem sempre requerem explicações, mas solicitam apreciação. Uma canção de Gilberto Gil talvez possa nos ajudar a considerar isso:
METÁFORA (Gilberto Gil)
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz “lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz “meta”
Pode estar querendo dizer o incabível
Por isso não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo e nada cabem
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber o incabível
Deixe a lata do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Quando elaborou o projeto de Teologia da Cultura em sua fase de docência na Alemanha, Tillich parecia muito otimista quanto à possibilidade de a arte oferecer respostas às perguntas levantadas pela situação cultural. Posteriormente, nos Estados Unidos, esse otimismo diminuiu, talvez devido à segunda guerra mundial e a outros fatores. A arte continuava a ter poder revelatório, mas a tendência é identificar nas manifestações culturais apenas um questionamento sobre os limites da experiência humana, mas incapaz de ser respondido em si mesmo sem o auxílio dos símbolos da tradição cristã. O tom é outro e transparece nele certo desapontamento e melancolia. A cultura ainda é capaz de levantar questões significativas, mas incapaz de respondê-las a partir de seus próprios recursos ou fontes. Tal cautela, porém, não afeta sua crença de que a substância espiritual reside nas profundezas da sociedade e naturalmente, sempre havia a possibilidade de uma obra de arte veicular com expressividade os símbolos da tradição cristã.
6. Momentos de beleza
Talvez uma possibilidade de ir além de Tillich esteja em um de seus próprios escritos. Trata-se do pequeno artigo “Um momento de beleza”, escrito em 1955, no qual Tillich recorda o choque revelador com uma das Madonnas de Botticelli. Segundo ele, aquele foi um momento de êxtase que o transportou espiritualmente a uma esfera de sentido e criatividade e em que teve a oportunidade de contemplar na beleza da pintura a “Beleza-em-si” (Beauty itself). Ele diz ter ficado paralisado, impressionado por perceber que algo do fundamento divino de todas as coisas lhe fora revelado. Afirma que tal experiência lhe devolveu a alegria da vida e conclui: “Aquele momento afetou toda minha vida, deu-me as chaves para a interpretação da existência humana, trouxe vitalidade e verdade espiritual. Eu o comparo com o que é usualmente chamado de revelação na linguagem religiosa”.
Importante aqui é destacar dois substantivos contidos no título do seu artigo-depoimento. O primeiro é “momento”, e o segundo, “beleza”. Devido às circunstâncias pessoais (retorno da guerra onde vivera experiências trágicas de convívio com a morte, fim do primeiro casamento, desintegração pessoal e social e conseqüente ausência de esperanças), Tillich encontrava-se bastante fragilizado. Esse era seu “momento” de vida. É natural que em tais circunstâncias, qualquer pessoa busque uma “resposta”, uma abertura de fresta entre as nebulosas e sombrias cortinas nos quais se sente encerrado. O encontro com a Madonna de Botticelli lhe proporcionou algo até então não experimentado – exatamente “um momento de beleza”, de transfiguração em meio à feiúra das tragédias pessoais e sociais com as quais convivia. De fato, aquele “momento” foi decisivo, mesmo que futuramente a situação política e social tenha piorado com a ascensão do nazismo. Tillich conviverá, então, com a “lembrança” do êxtase e talvez até mesmo pretendesse armar sua tenda particular diante daquela transfiguração, tal como fizeram os discípulos na conhecida narrativa dos evangelhos. Não sendo isso possível, ele tentará perpetuar o “momento” através de categorias filosóficas e teológicas, elaborando um quadro de pensamento no qual o “momento” poderia ser resgatado em outras ocasiões. Trata-se de tentação comum á experiência humana. Dificilmente nos contentamos em desfrutar o “momento” de um concerto ou a contemplação de um quadro. Nossa tendência é procurarmos o CD para ouvirmos o concerto em casa ou comprarmos a reprodução desauratizada e passamos a viver a lembrança do “momento” que passou. Raramente a “beleza” experimentada naquele “momento” inicial acompanhará o CD ou a reprodução. Mas tais objetos, ao menos servirão para amenizar a saudade e provocar novas emoções.
“Beleza” é um conceito filosófico perigoso. A estética criou historicamente padrões para avaliar objetivamente uma obra de arte medindo e definindo suas proporções, equilíbrio, harmonia” (nas formas ou nos sons), segundo os quais estabelece gradientes para classificar o belo e o não-belo. Herbert Read critica as utilizações desse conceito e afirma que o mesmo só terá sentido se a ele for acrescentado o de “vitalidade”, idéia semelhante ao conceito de “expressividade” em Tillich. Read dirá que “a singularidade é reduzida ao momento em que esses fatores (beleza e vitalidade) são reunidos e projetados da consciência de uma pessoa. É o acontecimento que é excepcional: a maneira, não a matéria”. Se Tillich buscava “respostas” ao retornar do front, de certo modo ele encontrou em um “momento de beleza”, ainda que tal resposta tenha sido fugidia, passageira e tênue. Sua tentação foi perpetuar seu particular “momento de beleza” generalizando-o e tentando explicá-lo a partir de sua formação teológica e filosófica.
A arte, de fato, não oferece “respostas” permanentes. Ela nos provoca, mexe com nossas emoções, nos invade, nos deixa boquiabertos, atinge nossas emoções e nos abala. As pessoas têm formação mais técnica nos detalhes e categorias estruturais da estética desfrutam a arte a seu modo. O músico profissional é capaz de identificar pequenas desafinações nos acordes iniciais da “Valsa das flores” ou lamentar a desproporcionalidade de formas pintadas ou esculpidas que, num primeiro momento, não são visíveis ou audíveis ao expectador comum. Mas o “momento de beleza” está ali, fugidio, incomensurável, incapaz de ser aprisionado, mas sempre oferecido como dádiva a ser desfrutado.
A a Teologia da Cultura é um vasto campo ainda a ser desbravado porque o dinamismo da produção cultural humana é muito rápido. Naturalmente não estou falando aqui dos modismos da indústria cultural, mas das muitas expressões revelatórias que nos são veiculadas através de poetas e compositores que, com seu sacerdócio e seus dons, são capazes de revelar a pequenez e fragilidade humanas e nos motivar a enfrentar a transitoriedade e a prestar constas ao transcendente. A atualidade do pensamento de Tillich nessa área talvez esteja exatamente no desafio que ele nos faz e nas pistas que nos oferece. Termino com uma canção para nossa apreciação, gravada por Milton Nascimento durante o show “Tambores de Minas”. Quando ouvi essa canção pela primeira vez também confrontado com “um momento de beleza”. Ela estava ali. Talvez ela não volte, ou retorne de outras formas. Mas sua lembrança se impregnou em mim como “grata memória”:
GUARDANAPOS DE PAPEL (Leo Masliah)
Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas ,trombetas
E sempre aparecem quando menos aguardados, guardados
Guardados entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pare, seus pares
E convivem com fantasmas multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras e te pedem que não chores.
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas, feridas
Mas resistem com palavras confundidas, fundidas
Fundidas ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glórias nem medalhas, medalhas, medalhas
Se contentam com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos, projetos, projetos
Que jamais são alcançados, cansados, cansados
Nada disso importa enquanto eles escrevem, escrevem, escrevem
O que sabem que não sabem e o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas e outras, e outras
Cujo brilho sem barulho veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retorcendo-se confusas, confusas, confusas
Em delgados guardanapos feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro, inteiro, inteiro
Fossem vendo pra depois voltar pro Rio de Janeiro
* Por Carlos Eduardo B. Calvani rev. do Centro de Estudos Anglicanos, sediado em Londrina, Paraná.
terça-feira, 7 de julho de 2009
C.S.Lewis e Sigmund Freud: uma comparação sobre seus pensamentos e suas visões sobre a vida, a dor e a morte.
O seguinte artigo é adaptado de uma preleção do Dr. Armand Nicholi em uma reunião de alunos e professores promovido pela Dallas Christian Leadership na Southern Methodist University em 23 de Setembro de 1997. A parte dois aparece na The Real Issue de Março de 1998 e aborda a mudança de cosmovisão de Lewis e sua conversão
As cosmovisões de Sigmund Freud e C.S. Lewis, ambas predominantes na nossa cultura hoje, apresentam interpretações diametralmente opostas de quem nós somos, nossa identidade, de onde viemos, de nossa herança cultural e biológica e de nosso destino. Primeiro, vamos arrumar as bases para nossa discussão fazendo três perguntas. Quem é Sigmund Freud? Quem é C.S.Lewis? E o que é uma cosmovisão?
Poucos homens influenciaram mais a estrutura moral de nossa civilização do que Sigmund Freud e C.S. Lewis. Freud foi o médico Vienense que desenvolveu a psicanálise. Muitos historiadores colocam suas descobertas ao lado das de Plank e Einstein. Suas teorias proveram um novo entendimento sobre como nossas mentes funcionam. Suas idéias permeiam diversas disciplinas incluindo a medicina, literatura, sociologia, antropologia, história e o direito. A interpretação do comportamento humano no direito e na crítica literária é profundamente influenciada pela suas teorias. Seus conceitos estão tão permeados na nossa linguagem que nós usamos termos como repressão, complexo, projeção, narcisismo, ato falho e rivalidade fraterna sem sequer nos apercebemos de sua origem.
Devido ao inegável impacto de seu pensamento na nossa cultura, os estudiosos se referem a esse século como o “século de Freud”. Por que isso? À luz do que sabemos hoje, Freud é continuamente criticado, desacreditado, e difamado; ainda assim sua figura continua a aparecer em capa de revistas e artigos de primeira página em jornais como o The New York Times. As recentes pesquisas históricas intensificaram o interesse nas controvérsias em torno de Freud e seu trabalho. Como parte de seu legado intelectual, Freud defendeu veementemente uma filosofia de vida secular, materialista e ateísta.
Apesar do fato de C.S.Lewis ter conquistado reconhecimento intelectual muito antes de sua morte em 1963, seus livros acadêmicos e populares continuaram a vender milhões de cópias por ano e sua influência continua a crescer. Durante a Segunda Guerra Mundial, os pronunciamentos de Lewis no rádio fizeram sua voz a segunda mais reconhecida na BBC perdendo apenas para Churchill. Nos anos que se seguiram, a foto de Lewis apareceu na capa da Times e outras revistas importantes.
Hoje, a grande quantidade de livros pessoais, biográficos e literários sobre Lewis, o grande número de sociedades sobre C.S.Lewis em universidades; os periódicos e jornais sobre C.S.Lewis; como também o recente filme e peça sobre sua vida confirmam o sempre crescente interesse nesse homem e na sua obra. Como um jovem membro da universidade de Oxford, Lewis mudou de uma visão secular e ateísta para uma espiritual; uma cosmovisão que Freud frequentemente atacava, mas a qual Lewis abraçou e definiu em muitos de seus escritos após a conversão. Tanto Lewis quanto Freud possuíam dons literários extraordinários. Freud ganhou o prêmio Goethe de literatura em 1930. Lewis, que ensinou em Oxford e foi catedrático de Literatura Inglesa na Universidade de Cambridge, produziu alguns dos maiores criticismo literários e possui uma grande quantidade de livros acadêmicos e de ficção vastamente lidos.
Cosmovisões conflitantes.
Agora, sobre a questão da definição de “cosmovisão”. Em 1933, numa preleção chamada “A questão da Weltanschauung,” Freud definiu cosmovisão como “uma construção intelectual que resolve todos os problemas de nossa existência, uniformemente, sobre o fundamento de uma hipótese dominante.”
Todos nós, quer nos apercebamos ou não, temos uma cosmovisão; temos uma filosofia de vida, nossa tentativa de fazer nossa existência ter sentido. Ela contêm nossas respostas às principais questões que dizem respeito ao sentido de nossas vidas, questões que nos perturbam em algum período de nossas vidas, e que nós frequentemente pensamos apenas quando acordamos às três da manhã. O resto do tempo que estamos sozinhos nós temos o rádio e a televisão ligados que impedem que fiquemos sozinhos com nós mesmos. Pascal dizia que a única razão de nossa infelicidade é que nós não conseguimos ficar sozinhos num quarto. Ele alegou que nós não gostamos de confrontar a realidade de nossas vidas; a condição humana é tão basicamente infeliz que nós fazemos de tudo para nos distrair de pensar nisso.
O vasto interesse e permanente influência das obras de Freud e Lewis se originam nem tanto de seus estilos literários singulares, mas mais do apelo universal que tem as questões que eles trabalharam; questões que permanecem extraordinariamente relevantes às nossas vidas pessoais e à nossa crise social e moral contemporânea.
A partir de visões diametralmente opostas, eles falaram sobre questões como, “Há sentido e propósito para a existência?” Freud diria, “Certamente não! Não podemos nem, do nosso ponto de vista científico, abordar a questão de se há ou não sentido para a vida.” Mas ele afirmaria que se você observar o comportamento humano, perceberá que o principal propósito da vida parece ser a conquista da felicidade e do prazer. Assim Freud delineou o “principio do prazer” como uma das principais características de nossa existência.
Lewis, por outro lado, disse que o sentido e propósito são encontrados na compreensão do porquê estamos aqui em relação ao Criador que nos fez. Nosso propósito principal é estabelecer um relacionamento com esse Criador. Freud e Lewis também discutiram as fontes da moralidade e da consciência. Todos os dias nós acordamos e fazemos uma série de decisões que nos sustentam ao longo do dia. Essas decisões são geralmente baseadas no que nós consideramos que é certo: o que nós valorizamos, nosso código moral. Decidimos estudar com afinco e não usar as idéias de outras pessoas, por que de alguma forma isso é parte de nosso código moral. Já Freud disse que nosso código moral vem da experiência humana, como nossas leis de tráfego. Nós fazemos os códigos por que eles são convenientes para nós. Em algumas culturas você dirige na esquerda, em outras você dirige na direita.
Mas Lewis discordaria disso. Ele disse que apesar das diferenças culturais, há um código moral básico que transcende a cultura e o tempo. Essa lei não é inventada, como as leis de tráfego, mas é descoberta, como as verdades matemáticas. Então, Freud e Lewis tinham um entendimento completamente diferente da fonte da verdade moral.
Lewis e Freud também falaram sobre a existência de uma inteligência além do universo; Freud disse “Não”, Lewis disse “Sim”. Suas visões os levaram a discutir o problema dos milagres na era científica. Freud alegou que os milagres contradizem tudo que aprendemos através da observação empírica, eles não ocorrem de fato. Entretanto, Lewis perguntaria; “Como sabemos que eles não ocorrem? Se há alguma evidência, a filosofia que você trás para interpretar a evidência determina como você interpretará.” Então, de acordo com Lewis, nós precisamos entender se nossa filosofia exclui os milagres e, portanto, afeta nossa interpretação da evidência.
Tanto Freud quanto Lewis falaram muito sobre a sexualidade humana. Freud considerava todo tipo de amor uma forma de sexualidade sublimada, até mesmo o amor entre amigos. Lewis disse que qualquer um que pense que a amizade é baseada em sexualidade nunca teve um amigo realmente.
Eles também discutiram o problema da dor e do sofrimento. Freud era extremamente perturbado por esse problema, e Lewis escreveu alguns maravilhosos livros que ajudam a explicar o problema do sofrimento que todos nós experimentamos. O Problema do Sofrimento [Editora Vida] é uma discussão bastante intelectual da questão. Quando a mulher de Lewis morreu, ele escreveu Anatomia de uma dor [Editora Vida], que eu recomendo enfaticamente. As pessoas da minha área dizem que esse é o melhor trabalho sobre o processo de luto.
E, é claro, ambos discutiram o que Freud chamou de “O doloroso mistério da morte”. Mas eu voltarei a isso mais tarde. Cada uma das questões que eu abordei são filosóficas por natureza. É significante notar que os trabalhos filosóficos de Freud tiveram mais influência na secularização da cultura do que seus trabalhos científicos. Eu vou discutir dois desses temas.
Deus em Questão
Primeiro, a existência de uma inteligência para além do universo, o que os cientistas modernos chamam de “A questão de Deus”. Norman Ramsay, professor de física de partículas em Harvard, ganhou o Prêmio Nobel de Fìsica em 1989. Ele me disse recentemente que mesmo em seu campo, os cientistas tem se tornado interessados na questão de se há ou não uma inteligência para além do universo. Ele disse que é uma área de interesse relativamente recente para eles e que tem sido provocada principalmente pela aceitação da teoria do Big Bang. Eu repliquei dizendo que eu não entendi bem a relação. Ele disse, “Bem, quando acreditava-se que o universo não tinha começo era mais fácil, pois ninguém tinha que se preocupar com o que veio antes. Mas desde que alguém aceita a idéia de que o universo teve um inicio num ponto especifico do tempo, tem que pensar também sobre o que ocorreu antes. Então os físicos agora estão pensando sobre questões que somente teólogos e filósofos pensaram no passado.”
Ao olharmos para o mundo ao nosso redor, nós fazemos uma de duas suposições: ou vemos o mundo como um acidente e nossa existência neste planeta como uma questão de pura chance, ou presumimos alguma inteligência para além do universo que não só provê ao universo um desenho e ordem, mas também provê sentido e propósito à vida. Como vivemos nossas vidas, como terminamos nossas vidas, o que percebemos, como interpretamos o que percebemos, tudo é formado e influenciado consciente ou inconscientemente por uma dessas duas suposições básicas.
Tendo isso em mente, Freud dividiu todas as pessoas entre “crentes” e “descrentes”. Descrentes incluem todos aqueles que se consideram cínicos, céticos, escarnecedores, agnósticos ou ateus. Crentes incluem o resto, cuja crença varia desde um mero assentimento intelectual de que há algo ou alguém além deste mundo até aqueles como Lewis, Agostinho, Tolstoy e Pascal que tiveram uma experiência transformadora depois da qual sua fé se tornou o principal princípio motivador e organizador de suas vidas.
Freud foi de encontro, clara e enfaticamente, à noção de que há “Alguém” além deste mundo. Ele descreve sua cosmovisão como secular e a chama de “cientifica”, e ele alegou que não há nenhuma outra fonte de conhecimento do universo que não seja “a cautelosa observação, o que chamamos de pesquisa.” Logo, nenhum conhecimento, ele disse, pode ser derivado de revelação ou intuição. Ele afirmou que a noção do universo criado por um ser “parecido com o homem mas exaltado em cada aspecto, um super homem idealizado, reflete a grotesca ignorância dos povos primitivos.” Ele afirmou que nenhuma pessoa inteligente pode aceitar os absurdos da cosmovisão religiosa.
Freud descreveu o conceito de Deus como uma simples projeção do desejo infantil de proteção por um pai todo-poderoso. Ele acrescentou que “a religião é uma tentativa de controlar o mundo sensorial, no qual estamos situados, por um mundo que desejamos que é desenvolvido dentro de nós como um resultado de anormalidades biológicas e psicológicas.”
Ele concluiu que a visão religiosa é “tão patética e absurda e… infantil que é humilhante e vergonhoso pensar que a maioria das pessoas jamais se sobreporão a isso.” Apenas por um breve período quando era estudante sob a orientação de um brilhante filósofo chamado Franz Brentano, um crente devoto, Freud duvidou de seu ateísmo, mas ele afirmou que continuou descrente pelo resto de sua vida. Um ano antes de sua morte, Freud escreveu para Charles Sanger, “Nem na minha vida privada nem nos meus escritos eu deixei em segredo o fato de ser um completo descrente.”
Quando examinamos o relato cuidadosamente nós descobrimos que Freud talvez não estivesse tão certo de seu ateísmo quanto ele proclamava. Certamente ele se referia a si mesmo frequentemente como “um Judeu infiel” e ele rejeitou completamente a visão religiosa do universo, especialmente a visão Judaico-Cristã. Ele certamente atacou essa visão com todo seu poderio intelectual e de todas as perspectivas possíveis. Mas ainda assim, por alguma razão ele permaneceu ocupado com estas questões; ele simplesmente não conseguia deixá-las de lado. Ele passou os últimos trinta anos de sua vida escrevendo sobre tais questões.
Num estudo autobiográfico ele disse que essas questões filosóficas e religiosas o interessaram por toda sua vida desde sua juventude. Um grande número de evidências revelam que a cosmovisão de Freud não o deixavam confortável. A fé, de forma alguma, era caso concluído para ele, e ele era extremamente ambivalente quanto à existência de Deus.
Anna Freud, filha e Freud que faleceu há alguns anos atrás, me explicou a única forma de conhecer seu pai: “Não leia suas biografias;” ela instruiu, “leia suas cartas.” Por todas suas cartas, Freud faz afirmações como, “Se algum dia nós nos encontrarmos lá em cima”, “minha única, e secreta oração,” e afirmações sobre a graça de Deus. Durante os últimos trinta anos de sua vida, Freud manteve uma constante troca de centenas de cartas com o teólogo Suiço, Oskar Pfister. É interessante notar que sua correspondência mais longa foi exatamente com este teólogo. Ele admirava Pfister e escreveu, “Você é um verdadeiro servo de Deus… que sente a necessidade de fazer um bem espiritual para todos que você encontra. Você fez isso por mim também.” Ele, posteriormente, disse que Pfister estava, “na honrosa posição de poder levar homens à Deus.”
Será isso apenas formas de expressão? Poderíamos dizer isso de qualquer um, menos de Freud, que alegava que mesmo um ato falho da fala tem um sentido.
O Problema da Dor e do Sofrimento
Eu tenho estudado os escritos de Freud como também suas cartas por muitos anos e eu concluí que o principal obstáculo que Freud tinha com a idéia de um ser inteligente além do universo era sua incapacidade de conciliar um Deus bom e todo-poderoso com o sofrimento que todos nós experimentamos em certa intensidade. Numa carta para Pfister, em 1928, Freud escreveu, “E por último, deixe-me ser indelicado. Como diabos você concilia tudo que experimentamos e esperamos nesse mundo com sua suposição de um ordem moral mundial?” E depois, numa preleção em 1944, ele disse: “Não parece ser o caso de haver um poder no universo que observa o bem-estar dos indivíduos com cuidado paternal e dirige seus interesses em direção à um final feliz. Pelo contrário, os destinos da raça humana não podem ser harmonizados nem com a hipótese de uma benevolência universal nem com a parcialmente contraditória hipótese de justiça universal. Terremotos, tsunamis, complicações que não fazem nenhum distinção entre os virtuosos e piedosos e os imorais e descrentes. Mesmo quando o que está em questão não é a natureza inanimada, mas quando o destino individual depende de suas relações com outras pessoas, não é de maneira alguma a regra de que o mal é punido e o bem recompensado. Frequentemente são os espertos e impíos que usufruem das boas coisas do mundo e o piedoso não usufrui de nada. São poderes obscuros, insensíveis e sem amor que determinam nosso destino. Os sistemas de recompensas e punições, que a religião descreve como governo do universo, parece não existir.” Eu me pergunto quantos de nós pelo menos uma vez não nos sentimos assim. Freud parecia não estar ciente, é claro, de que na cosmovisão Biblíca o governo do universo está temporariamente em mãos inimigas. Antes de Anna Freud falecer, eu lhe perguntei sobre a dificuldade de seu pai com o problema do sofrimento, e ela expressou grande curiosidade em relação a isso. Num determinado momento ela me disse, “Como você explica o sofrimento no mundo? Há alguém lá em cima que diz, ‘Você terá câncer. Você tuberculose’, e distribui adversidades?” Eu disse que não sabia exatamente como responder à pergunta, mas eu sei que ela respeitava Oskar Pfister. Eu disse que pessoas como Pfister descreveriam a presença de um poder maligno no universo que é responsável por parte do sofrimento. Anna pareceu interessada nessa noção e voltou frequentemente a ela na nossa conversa. Devemos lembrar que Freud sofreu consideravelmente em sua vida, emocionalmente como um Judeu crescido na profundamente Católica Viena, e fisicamente com o câncer intratável na boca com o qual ele lutou por dezesseis anos de sua vida. Os procedimentos médicos não eram bem desenvolvidos na época e o causaram uma grande dose de dor física. Então precisamos ter isso em mente quando tentamos entender como ele se sentia. C.S.Lewis, ao longo da primeira metade de sua vida, também se descreveu, como Freud, como um “completo descrente”. Se Freud duvidou de sua descrença quando estava na faculdade, Lewis se regozijava na sua descrença quando estudante em Oxford. Ele expressou um forte cinismo e hostilidade em relação à pessoas que ele chamava de “crentes” e compartilhava do pessimismo de Freud em relação a vida. Quando tinha trinta e três anos, já um membro popular de Oxford, Lewis experimentou uma profunda e radical mudança em sua vida e em seu pensamento. Ele rejeitou a cosmovisão materialista e ateísta e abraçou uma forte fé em Deus e em Jesus Cristo. Essa conversão de uma cosmovisão para outra começou uma fonte inesgotável de livros acadêmicos e populares que influenciaram milhões de pessoas.
C.S.Lewis e Sigmund Freud: uma comparação sobre seus pensamentos e suas visões sobre a vida, a dor e a morte, parte 2
Como alguém muda sua cosmovisão de uma para outra que é dramaticamente diferente? Com C.S. Lewis, essa transformação aconteceu através de um longo período de tempo. Ainda assim, sua conversão não foi menos dramática do que a de Paulo, Agostinho, Tolstoy, Pascal e muitos outros.
Essas são algumas das influências que pressionaram Lewis a mudar sua cosmovisão: Primeiro, Lewis gradativamente se tornou ciente de que a maioria dos grandes autores que ele vinha lendo por anos, eram crentes. Isso começou a fazê-lo pensar. Então, ao reler Eurípedes e Space, Time and Deity de Samuel Alexander, Lewis foi forçado a pensar sobre um profundo anseio dentro de si mesmo; ele reconheceu que era um tipo de anseio que ele experimentava periodicamente mas não conseguia entender bem. Ele chamou isso de “alegria” e escreveu bastante sobre isso. Ele percebeu que essa alegria não era um fim em si mesmo, mas um lembrete de algo ou alguém maior. Posteriormente, ele veio a crer que esse alguém é o Criador.
Segundo, Lewis ficou chocado durante uma conversa com um dos seus colegas professores de Oxford ao ouvir ele, um ateu declarado, afirmar que as evidências para a autenticidade dos evangelhos eram muito boas. As evidências eram persuasivas e as histórias dos Evangelhos pareciam ser verdadeiras. Lewis disse que é impossível compreender o impacto que isso teve nele vindo desse membro específico da faculdade.
Terceiro, ele leu O Homem Eterno de G. K. Chesterton e finalmente passou a crer em Deus. Ele escreve sobre isso de forma sucinta em Surpreendido pela Alegria:
Você tem que me imaginar sozinho naquele quarto em Magdalene, noite após noite, sentindo, a todo momento que minha mente se desviava do meu trabalho, a permanente, e persistente aproximação dEle, o qual eu não queria encontrar de maneira alguma. O que eu temia, finalmente, me sobreveio. No Trinity Term de 1929 eu finalmente desisti, e admiti que Deus era Deus, e me ajoelhei e orei: talvez, aquela noite, o mais relutante e desapontado convertido de toda Inglaterra.
Nesse momento Lewis era um teísta, não um Cristão. Ele se ocupou por muitos longos meses para entender a história do Evangelho e as doutrinas da redenção e ressurreição. Ele chegou a ler o Evangelho de João em Grego.
Então, no outono de 1931, ele jantou com dois membros da faculdade, J.R.R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis, e Hugo Dyson, um professor de literatura Inglesa. Depois do jantar, os três conversaram sobre a grande questão concernente a verdade dos Evangelhos e se fizeram a pergunta que um dos pupilos de Lewis se referiu como, “Será verdadeiro, será verdadeiro, esse conto mais impressionante de todos?” Eles conversaram e caminharam por horas por um caminho chamado Caminho de Addison. O relógio na Torre de Magdalene marcava três da manhã antes deles partirem. Essa conversa teve um profundo efeito em Lewis. Nove dias depois, Lewis viajou de moto com seu irmão. Ele escreveu, “Quando saímos eu não acreditava que Jesus Cristo era o Filho de Deus, e quando chegamos ao zoológico, eu já cria.” Depois, Lewis escreveu: “Minha longa conversa com Dyson e Tolkien tiveram um grande impacto nisso.”
A conversão de Lewis revolucionou sua vida. Ele se tornou um prolifíco autor, vendendo milhões de cópias de livros e influenciando muitas pessoas em universidades, especialmente nesse país e na Europa. Devido ao fato dele mesmo ter sido ateu pela primeira metade de sua vida, ele conhecia os argumentos muito bem. Por exemplo, Lewis concordava com Freud em crer que nós, de fato, possuímos um profundo desejo por Deus, mas ele discordava com a noção de Freud de que Deus, portanto, era nada mais do que produto da satisfação de um desejo. O que nós desejamos, Lewis apontou, não tem nada a ver com a questão de se Deus existe ou não. De acordo com a teoria de Freud, o desejo da não-existência de Deus seria tão forte quando o desejo de sua existência. Lewis, portanto, disse que tudo que isso nos diz é algo sobre nossos sentimentos, mas muito pouco sobre a existência ou inexistência de Deus. Então Lewis tendia a responder a maioria dos argumentos formulados por Freud.
A Questão da Mortalidade
Vamos mudar agora para nosso segundo assunto, a questão da mortalidade, a qual Freud se referiu como “o doloroso mistério da morte.” Sócrates disse que o verdadeiro filósofo está sempre negando a morte e o ato de morrer. E, de fato, a maioria dos grandes escritores escreveram continuamente sobre isso.
Uma questão fundamental da nossa existência, uma que aprendemos ainda cedo na vida, é que nós estamos aqui na terra por um curto período. Nós somos as únicas criaturas na terra que podem prever nossa própria morte. Ao mesmo tempo, nós temos um profundo anseio pela permanência e um profundo e penetrante medo de sermos separados daqueles que nós amamos sendo abandonados. O medo de ser abandonado é o primeiro medo que experimentados quando crianças, um bebê chora quando sua mão sai do quarto. Pesquisas no Hospital Geral de Massachusetts mostraram que, em pacientes terminais, isso é o que eles mais temem, o medo de serem deixados sozinhos, de serem abandonados. É um medo temos em mente por toda nossa vida. Ainda assim não podemos escapar da cruel realidade de que cada respiro que damos, cada batida do coração, cada hora do dia nos aproxima ainda mais da hora em que deixaremos para trás aqueles que nós amamos.
Agora, como você processa essa informação? Como você entra em acordo com isso? Os psiquiatras dizem que essa questão é tão importante que você não pode realmente viver sua vida até que entre em um acordo com essa informação. Mas como você processa isso sem se encher de ansiedade ou e medo? Isso é o que Freud chamou de “o doloroso mistério da morte.”
Freud e o Mistério da Morte.
Freud escreveu frequentemente sobre a morte. Eu mencionarei apenas uns poucos comentários que ele escreveu e como ele frequentemente se confrontava com sua própria morte.
Em 1932, numa obra chamada Totem e Tabu, Freud fez a interessante observação de que a morte não existe na nossa mente inconsciente: “Nosso inconsciente não acredita em sua própria morte. Ele se comporta como se fosse imortal. Nós não conseguimos imaginar nossa própria morte e quando tentamos fazê-lo nos apercebemos que somos, de fato, ainda espectadores, assim, ninguém crê em sua própria morte.” Freud evitou dar qualquer interpretação filosófica dessa observação provocadora de que nas profundezas de nossas mentes, “todos nós estamos convencidos de nossa imortalidade.”
Em O Futuro de uma Ilusão, Freud falou frequentemente sobre o doloroso mistério da dor. Ele terminou um ensaio com a curiosa sugestão de que se você quer suportar a vida você deve estar preparado para a morte. Ele pareceu perceber o que as pessoas na minha área tem falado durante anos, que nós não podemos realmente começar a viver nossas vidas até, de alguma forma, resolver o problema da nossa própria morte. E quando isso permanece não resolvido, gasta-se uma energia excessiva ou negando a morte ou se tornando obcecado com ela.
Freud não deixou dúvidas sobre como ele lidava com o problema. Ele se tornou obcecado com a morte. Seu colega Ernst Jones, seu biografo oficial, escreveu:
Pelo que sabemos da vida de Freud, ele parece ter sido possuído por pensamentos de morte. Mais do que qualquer grande homem que eu posso imaginar. Mesmo na época que estávamos nos conhecendo ele tinha o desconcertante hábito de partir dizendo “Adeus. Você talvez não me verá nunca mais.” E então haviam os repetidos ataques do que ele chamava de “o pavor da morte”. Ele odiava envelhecer. Mesmo quando ele tinha quarenta anos e a cada ano que se passava, os pensamentos de morte se tornavam cada vez mais despóticos. Ele disse uma vez que ele pensava sobre isso cada dia de sua vida, o que é bastante incomum.
Freud sonhava com a morte continuamente, e desde cedo em sua vida ele era obcecado em prever sua morte. O médico de Freud descreveu sua preocupação com a morte como supersticiosa e obsessiva. Freud estava certo que morreria aos 41, depois aos 51, depois 61, depois 62, depois aos 70. Ele entrava num hotel e se lhe fosse entregue o quarto 63. Ele saia e permanecia, por meses, convencido de que morreria aos 63 anos. Quando Freud perdeu um ente querido, ele se sentiu totalmente desesperançoso. Numa carta para Jones, ele escreveu, “Eu tinha a sua idade quando meu pai morreu e isso revolucionou minha alma. Você consegue se lembrar de um tempo tão cheio de morte quanto esse?” Quando tinha 64 anos, Freud perdeu uma jovem e linda filha, e ele se perguntava quando chegaria a sua hora. Ele desejava que fosse logo. Ele disse, “Eu não sei o que resta dizer depois de um evento paralizante como esse que não gera nenhuma dúvida posterior para quem não é crente” . Em outra carta ele escreveu, “Como um descrente, eu não tenho ninguém para acusar e não há lugar onde fazer uma queixa.” Três anos depois o neto favorito de Freud morreu de tuberculose. Ele escreveu para um amigo, “Isso é difícil de suportar. Eu acho que jamais experimentei tamanha dor. Talvez minha própria doença contribua para isso. Eu trabalho por pura necessidade. Tudo perdeu o sentido para mim.” E em outra carta ele afirmou, “Para mim, essa criança tomou o lugar de todos os meus filhos e netos já que eu não me importo com nenhum dos meus netos. Eu não encontro nenhuma alegria na vida.”
Freud morreu aos 83 anos depois de uma batalhar contra um câncer que durou 16 anos. Seu livro favorito era o Fausto de Goethe, a história de Fausto fazendo um pacto com o diabo. Logo antes de Freud morrer, ele foi até a estante da livraria e pegou um livro de Balzac entitulado The Fatal Skin, no qual o personagem principal também faz um pacto com o diabo. O livro termina quando o herói não consegue controlar seu medo da morte e morre em estado de pânico. Estranho, como último livro. Depois de ler o lviro, Freud lembrou seu médico da promessa que ele havia feito de facilitar sua passagem quando o tempo tivesse chegado. Seu médico injetou dois centigramas de morfina que o fizeram dormir, então 12 horas depois ele injetou mais dois centigramas. Freud morreu às três da manhã do dia 12 de Setembro de 1939.
C.S. Lewis e a Morte
C.S. Lewis também escreveu sobre a mortalidade. Em O Problema do Sofrimento, Lewis descreve como, quando ateu, o problema do sofrimento humano, especialmente a capacidade humana de prever sua morte enquanto intensamente deseja permanecer, foi uma barreira para ele crer num Deus bom e todo-poderoso. Após sua conversão, ele entendeu a morte como um resultado da queda, uma transgressão das leis de Deus, e que a morte não era parte do plano original. (Talvez essa seja a razão de não termos símbolo para a morte no nosso inconsciente, e termos tamanha dificuldade em aceitar nossa mortalidade.)
Lewis fez referência frequente ao principio básico que a morte ilustra. Quando tinha 31 anos, antes de sua conversão, Lewis escreveu uma carta que afirmava, “Eu penso que eu entendo isso todo ano no Outono, assim como a simples natureza e a exuberante vida do mundo está morrendo, de que algo mais está acordando. Será que isso é significante? A morte do homem natural sempre significa o nascimento do espiritual; será que algo jamais dorme se não para que algo mais acorde?”
Então alguns anos depois numa outra carta, ele escreveu, “Pode alguém acreditar que não havia nada de persistente naquele motivo de sangue, morte, e ressurreição que aparece e todos os grandes mitos?” Ele estava começando a notar enquanto estudava toda a literatura antiga que mesmo nas culturas pagãs haviam essas estranhas histórias de um deus vindo à terra, morrendo, e ressuscitando. Ele se perguntava o que isso significava. E quando você olha para a natureza, de fato você vê coisas mesmo na vida vegetal onde uma semente cai na terra, morre e volta a vida na forma de uma planta ou uma grande árvore. Será que isso pode estar apontando para o que ele eventualmente chamava de “o grande milagre,” a ressurreição? Ele disse, “Certamente a história da mente humana se encaixa muito melhor se você supor que tudo isso eram as primeiras sombras de algo cuja realidade veio em Cristo mesmo se nós não conseguirmos compreender isso completamente no presente.”
Tragédia Pessoal
Em sua vida pessoal, C. S. Lewis se confrontou com a morte quando era criança. Aos nove anos ele perdeu, em poucos meses, seu avô paterno, um tio, e sua linda mãe. Numa autobiografia, Surpreendido pela Alegria, ele se lembra de sempre estar confinado no seu quarto, doente com dor de cabeça e de dente. Ele estava profundamente triste por sua mãe não ter ido vê-lo. Ele não conseguia compreender a razão disso
Isso era por que ela estava doente, também: e o que era estranho é que haviam diversos médicos no seu quarto, e vozes e gente indo e vindo por toda a casa, portas se abrindo e fechando. Parecia ter durado por horas. E então meu pai, às lágrimas, entrou no meu quarto e começou a tentar explicar para a minha mente apavorada coisas que eu jamais havia concebido antes.
Disseram a ele que sua mãe estava morrendo de câncer. Ele chamou isso de “toda a existência mudando em algo estranho e ameaçador, enquanto a casa se enchia de aromas estranhos e barulhos durante a madrugada e conversas murmuradoras sinistras.”
“Meu pai jamais se recuperou dessa perda,” ele observou. Talvez Lewis também não, no sentido de que ele foi enviado para um colégio interno, pois seu pai estava muito deprimido para cuidar dele. Numa idade muito precoce, ele perdeu pai e mãe.
Quando tinha 18 anos e era estudante em Oxford, Lewis se juntou ao exército. Ele se feriu durante manobras na França e, numa preleção em Oxford muitos anos depois, ele fez a interessante observação de que a guerra não torna a morte mais frequente, 100 por cento de nós morremos e essa percentagem não pode ser aumentada.” Ele afirmou que a guerra coloca diversas mortes mais cedo e um dos aspectos positivos da guerra é que ela nos alerta de nossa mortalidade. Quando ele tinha 23 anos ele escreveu uma carta para seu pai sobre a morte de um velho professor, amigo de ambos. Ele afirmou:
Eu vi a morte com bastante frequência [na guerra] e mesmo assim não consigo deixar de vê-la como extraordinária e incrível. Uma pessoa real é tão real e tão obviamente viva e diferente do que o corpo morto. Não é possível crer que que aquele algo se tornou em nada, que alguém pode subitamente se transformar em nada.
Isso me lembra de dos meus estudantes de medicina que acabam de iniciar a prática médica; muito frequentemente eles me chamam para falar de suas experiências na residência. Uma das coisas que os estudantes mencionam com frequência é quão diferente uma pessoa é antes e depois da morte, quão diferente um corpo é de uma pessoa viva. Eles sentem que há algo que desaparece, que não está lá após a morte, e que nós somos muito mais do que nossos corpos. Lewis pareceu reconhecer isso quando ainda era muito jovem.
A Morte Importa
Em Anatomia de uma Dor, Lewis escreveu sobre a morte de sua esposa que era para ele tudo de importante. Como eu mencionei, muitos psiquiatras consideram esse livro um clássico no entendimento do luto. Lewis faz você sentir raiva, ressentimento, solidão, e medo. Sua raiva se torna palpável quando ele imagina que Deus é um “sádico cósmico, o imbecil odioso”. Ele escreveu, “É difícil ter paciência com pessoas que dizem que não há morte ou que a morte não importa. A morte existe,” ele continua, “e o que quer que importa. Poderíamos também dizer que o nascimento não importa.”
Lewis nunca perdeu seu senso de humor. Quando ele tinha 59 anos de idade, uma mulher escreveu para ele e disse quão terrível era ter acabado de perder um amigo. Lewis escreveu de volta, “Não há nada de desonroso em morrer. Eu conheço pessoas respeitáveis que morreram.” Em outra carta, alguns anos depois, ele escreveu, “Que estado nós chegamos para não conseguir dizer, ‘Estarei feliz quando Deus me chamar’ sem ter medo disso, é mórbido. Apesar de tudo, o próprio São Paulo disse o mesmo. Porque não deveríamos pensar mais para a frente, no advento?”
Lewis concluiu que nós podemos apenas fazer três coisas em relação a morte: desejá-la, temê-la, ou ignorá-la. Ele afirmou que a terceira tentativa, a qual o mundo moderno chama de saúde, certamento é a mais dificil e precária de todas.
Lewis sofreu um ataque cárdiaco em 15 de Junho de 1963, e entrou em coma. Ele se recuperou apesar disso, e viveu as poucos meses seguintes calmo e feliz. Seu último biografo nota que antes de sua conversão, Lewis era extraordinariamente ansioso em relação a morte, mas após sua conversão ele parecia ter uma maravilhosa calma quanto a isso, até mesmo uma antecipação. Relatos de seus últimos dias atestam a calma e paz interior.
Durante esse tempo, ele escreveu para um amigo de longa dada afirmando, “Apesar de eu não estar infeliz de maneira alguma, eu não consigo deixar de lamentar o fato de ter revivido em Julho”. Ele continuou, “Quero dizer, tendo sido levado tão suavemente até os portões, parece duro ter o portão fechado na cara e saber que todo o processo tem que recomeçar um dia. Pobre Lázaro.” E para um outro amigo ele perguntou, “Deve-se honrar Lázaro ao invés de Estevão como primeiro mártir. Ter sido trazido de volto e ter que passar por tudo de novo deve ter sido bem difícil.” E então ele disse, “Quando você morrer, me procure. É tudo tão divertido, solenemente divertido, não é?”
Duas semanas antes de sua morte, Lewis almoçou com um colega da faculdade. Ele disse que Lewis estava alerta de que o fim estava próximo e que jamais houve um homem tão bem preparado. Em 22 de Novembro de 1963, às 4 da tarde, o irmão de Lewis lhe trouxe seu chá da tarde. Ele observou que Lewis estava sonolento, mas calmo e alegre. As 5h30, ele estava morto.
Nós estudamos as cosmovisões contrastantes de duas mentes prolíficas. Uma visão alega que o universo é um acidente e que nossa existência é uma questão de pura chance. A outra vê o universo como resultado de um projeto e nossa existência como parte desse projeto. Um vê a morte como um mistério doloroso que causa grande ansiedade, desespero e amargura. O outro vê a morte como o passo final do projeto para o qual sua vida foi criada, um passo que pode ser experimentado com calma e até antecipação por causa do que Lewis chamou de “o grande milagre”, a ressurreição.
*Dr. Armand Nicholi é professor da Escola de Medicina de Harvard há 20 anos. Ele também ministra um curso popular na Universidade de Harvard sobre as cosmovisões contrastantes de Sigmund Freud e C.S.Lewis.
sexta-feira, 3 de julho de 2009
Analisando nossas perdas!
Um passo precipitado nessa dança pode parecer simples, embora muitas vezes não venha tão facilmente: somos chamados a sofrer nossas perdas. Parece paradoxal, mas cura e dança começam com uma visão honesta daquilo que nos causa dor. Enfrentamos perdas secretas que nos paralisaram e nos mantiveram
prisioneiros de rejeição, vergonha ou culpa. Não alimentamos a ilusão de que podemos ludibriar nosso caminho por entre dificuldades.
Ao tentar esconder dos olhos de Deus e de nossa própria consciência partes de nossa história, tornamo-nos juízes de nosso passado. Limitamos a misericórdia de Deus aos nossos medos humanos. Os esforços que fazemos para nos desconectar de nossos sofrimentos terminam por desconectar nosso sofrimento
do sofrimento de Deus por nós.
Quando Jesus disse: “… pois não vim chamar justos, e sim pecadores” (Mateus 9:13), estava afirmando que só aqueles que são capazes de enfrentar sua situação de dor estarão aptos para a cura e para a entrada em uma nova maneira de viver.
Algumas vezes temos que nos perguntar quais são nossas perdas. Ao fazer assim, vamos lembrar quão real é a experiência de perda. Talvez você saiba o que é perder um dos pais. Quanto me lembro da dor sentida após a enfermidade que levou minha mãe à morte! Podemos presenciar a morte de uma criança ou de um amigo. E também perdemos pessoas, às vezes dolorosamente,por causa de desentendimentos, conflitos ou raiva. Posso ficar esperando a visita de um amigo que não vem.
Podemos ver esperanças estremecerem por causa de uma enfermidade que nos acomete, ou sonhos se desvanecerem quando alguém em quem confiamos nos trai. Um membro da família pode deixar o lar com muita raiva, e ficamos nos perguntando em que falhamos. Muitas vezes, nosso sentido de perda
é maior ainda. Leio o jornal de hoje e encontro notícias ainda piores do que as de ontem. Nossa alma geme de tristeza diante da pobreza ou da destruição da beleza natural de nosso mundo. E perdemos o sentido da vida, não só porque nosso coração fica cansado, mas também porque alguém ridiculariza nossa maneira de pensar e orar. Nossas convicções, então, parecem de repente
fora de moda, desnecessárias. Até a nossa fé parece vacilar. Essas
são decepções potencialmente presentes em qualquer vida. Ocupações constantes, por exemplo, tornam-se um modo de fuga daquilo que, em outras circunstâncias, seria confrontador. O mundo em que vivemos jaz no poder do maligno, e o maligno prefere distrair-nos e preencher cada tempo livre com muitas tarefas, encontros, negócios, produção de objetos. Ele não permiteque haja espaço para uma dor genuína, para um choro. Nossa excessiva ocupação transforma-se em maldição, mesmo quando
achamos que ela fornece alívio para a dor que levamos dentro de nós. Nossa vida ultracarregada só serve para nos
impedir de enfrentar a inevitável dificuldade que todos, em algum momento, teremos. Enfrentar nossas perdas também significa desafiar a tentação de pensar que o mundo tem a obrigação de suprir nossas
necessidades. Até nossos hábitos do dia-a-dia levam-nos a disfarçar nossos sentimentos, e a comunicar-nos polidamente,mas sem sinceridade, evitando, assim, um confronto honesto e
curador. Amizades tornam-se superficiais e temporárias.
quinta-feira, 2 de julho de 2009
Quero aqui partilhar minha tristeza com a morte no último dia 30 de junho de 2009 do Rev. Jaci Maraschin, presbítero da Igreja Anglicana e meu professor, foi pastor por mais de 50 anos em várias igrejas anglicanas do Brasil além de músico e grande pensador do evangelho. Os momentos em que estive ao seu lado foi de grande aprendizado para mim, onde pude ser inspirado a querer, assim como ele, ainda mais o compromisso com o pensamento bíblico e a paixão pelo estudo das escrituras sagradas e da espiritualidade humana. Um dos livros de sua autoria que mais aprecio é "Igreja a gente Vive"de 1990, morreu na esperança da ressurreição e me deixou um exemplo de pastor a ser seguido.
Quero partilhar com vocês um lindo devocional do meu mano amado Cláudio de Franca SP.
A GRAÇA DE DEUS NUNCA É MERECIDA
Romanos 11:5-6:“Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça.” Romanos 11:5-6
Romanos 4:2-8:
“Porque, se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça. E é assim também que Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras: Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos; bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado.” Romanos 4:2-8:
A palavra graça, charis no original em grego, quer dizer um favor que Deus nos concede sem que o mereçamos. Logo, se fizermos alguma coisa para merecer a graça de Deus, já não será mais graça e sim dívida como lemos nos dois textos acima.
É incrível como a ignorância do que é a graça de Deus e de como a recebemos seja divulgada em rede nacional através de programas religiosos, com uma total falta de conhecimento do Senhor.
Sabemos que os desavisados se esforçarão para merecer a "graça divina" o que já é em si um devaneio, pois se Deus agraciar alguém pelo que este alguém fez, como ir ao culto, participar da eucaristia ou doar cestas básicas; Então Deus o estará pagando por uma dívida e não derramando a sua graça sobre este alguém. Pois a graça de Deus sempre é sem que o ser humano, mereça. Mas somente pela graça, maravilhosa graça!
Que Deus nos abençoe e guarde.
Amém!
Cláudio Nunes Horácio
O que é Conversão ?
CONVERSÃO é não ter absolutamente nenhum outro ponto de vista que não venha do Evangelho;
CONVERSÃO é não ter nenhum outro ponto de partida que não parta do Evangelho;
CONVERSÃO é não ter nenhum outro ponto de chão para caminhar que não seja o do Evangelho;
CONVERSÃO é não almejar nenhum outro ponto de chegada que não seja o do Evangelho, ou seja:
CONVERSÃO é estar impregnado do Evangelho dando razão a Deus todo dia, num processo que pode ter começado um dia, mas que só terminará no dia em que transformados de glória em glória nós nos tornarmos conforme a semelhança de Jesus;
CONVERSÃO é renovar a mente todo dia;
CONVERSÃO é ler este século, esse eon e não nos conformarmos com ele;
CONVERSÃO é ver mundo no mundo, e ver mundo no que se chama de Igreja;
CONVERSÃO é chamar de mundo não necessariamente o ambiente fora das paredes eclesiásticas, e chamar de Igreja o ambiente dentro das paredes eclesiásticas;
CONVERSÃO é saber que mundo é um espírito, um pensamento, ou uma atitude que pode está em qualquer lugar, e está freqüentemente nos concílios de um modo muito mais sofisticado do que está nos congressos políticos explicitamente definidores de políticas no mundo;
CONVERSÃO é manter a mente num estado de arrependimento constante, de metanóia, de mudança de mente, que por vezes, acontece com dor, outras vezes, só pela consciência que vai abraçando o entendimento e vai dando razão a Deus, e vai dando razão a Deus, e vai dando razão a Deus, e vai dizendo Deus tem razão, a palavra tem razão, e se ela tem razão eu quero conformar a minha vida conforme a verdade do Evangelho.
Caio Fábio