quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Uma vida de dedicação à causa dos pobres




A vida de dom Helder Câmara, que hoje completaria 100 anos, é pontuada pela luta incansável contra a miséria, que não foi bem vista durante a revolução militar, valendo-lhe a alcunha de ´Bispo Vermelho´. Sem abandonar esses princípios, originários da Teologia da Libertação, respeitou a hierarquia da Igreja Católica, mesmo vendo seu trabalho de 22 anos na Arquidiocese de Olinda e Recife desmoronar. O empenho em aproximar a Igreja do povo resultou no fim das missas em latim e também na criação da CNBB

O 11º filho do casal João Eduardo Torres Câmara, guarda-livros da Casa Boris Frères, e Adelaide Rodrigues Pessoa Câmara, professora. Nasceu no Centro de Fortaleza, em casa localizada onde hoje está o Mercado Central. A família contou que a mãe desejava o nome José, mas o pai abriu um atlas aleatoriamente e achou bonito o nome de uma cidadela ao norte da Holanda, Helder, cujo significado — limpo ou pensamento claro — bem o resume.

Helder Pessoa Câmara cedo demonstrou interesse pela vida religiosa. Tanto que, aos quatro/ cinco anos, brincava de celebrar missas. O sonho de tornar-se sacerdote resistiu aos discursos do pai maçom; ao tifo, que faz a irmã, Nair, por promessa, passar anos sem dançar; e também à epidemia de crupe, que levou seis dos 13 filhos do casal Câmara.

Aos 14 anos, ingressou no Seminário Diocesano de Fortaleza e, em 1931, aos 22 anos, com autorização especial da Santa Sé, por não ter a idade mínima exigida, ordenou-se.

Dedicado inicialmente ao Movimento da Juventude Operária Católica, fundou, em 1931, a Legião Cearense do Trabalho. Buscando meio termo entre socialismo e capitalismo, simpatizou com o Integralismo, movimento com bases no fascismo italiano.

A simpatia ao movimento, no entanto, não durou muito. Nos anos 1930 — quando o Brasil se industrializava e a população migrava do campo para a cidade — cresciam outras religiões. O ambiente, favorável ao pensamento católico democrático, influenciou a mudança de pensamento do então padre Helder. Em 1936, foi transferido para o Rio de Janeiro e viu, na Ação Católica, forma de organização que poderia contribuir para a renovação das práticas da Igreja, com a preocupação, também, de criar uma ordem social mais justa.

Os anos de 1950 são dedicado à mobilização dos bispos do Brasil e das Américas, esforço bem sucedido que resulta na criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952; e no Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em 1955. Sagrado bispo, no Rio de Janeiro, em 1952, assume, durante 12 anos, a secretaria geral da CNBB. Em 1964, torna-se arcebispo de Olinda e Recife.

De 1962 a 1965, no Concílio Vaticano II, dom Helder faz um trabalho silencioso e eficiente, com o desejo de por em pauta a questão da miséria e incentivar uma reforma interna na Igreja Católica. Para começar, defendeu a substituição do latim em celebrações, catequeses, orações e cantos pela língua viva em cada país, incentivando a participação dos fiéis.

No início da revolução militar, é bispo de todos, acima de direita e esquerda. O clima entre a Arquidiocese e militares é de camaradagem. Dom Helder prega para militares, com a pretensão de “converter” a revolução. Aos poucos, porém, seu discurso passa a ser visto como “vermelho”.

Após o Ato Institucional Nº 5, cai em desgraça. Em artigos anônimos, é chamado de comunista, difamador do Brasil, falso profeta, político demagogo; em pichações, de mentiroso, infiel, antipratriota; em denúncias oficiais, é acusado de promover guerrilhas, financiar entidades comunistas, ser amigo de Fidel Castro.

Entre 1970 e 1975, houve muita perseguição, prisão e tortura entre as pessoas mais próximas ao pastor. A residência oficial do bispo foi metralhada; além disso, telefonemas anônimos, ameaças de morte, insultos e palavrões nos muros do Palácio Episcopal. Indicado ao Nobel da Paz em 1970, 1971, 1972 e 1973, enfrentou campanha difamatória da revolução militar que provavelmente impediu a titulação.

A partir de 1985, viu seu trabalho de 22 anos à frente da Arquidiocese de Olinda e Recife desmoronar, a partir da posse do seu sucessor, dom José Cardoso Sobrinho, que fechou o Instituto de Teologia do Recife (Iter) e o Seminário Regional Nordeste II (Serene II), mas silenciou em respeito à hierarquia da Igreja Católica.

CINEMA E LITERATURA
O santo rebelde

A pesquisadora e cineasta mineira Érika Bauer, radicada em Brasília, responsável pelo documentário “Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde”, contou que dois fatores principais a influenciaram a querer contar a história do religioso: o primeiro foi perceber o carisma que dom Helder apresentava diante das câmeras e o segundo foi perceber que a maioria das pessoas que já ouvira falar dele desconhecia sua trajetória.

Ela partiu, então, para uma longa pesquisa de imagens que abrangeu, além do Brasil, França, Alemanha, Itália e Holanda. Érika captou logo a essência de dom Helder, homem que enxergou na mídia, antes de todos, o caminho para difundir os ideais da “Teologia da Libertação”, que alia os ensinamentos do Novo Testamento a questões sociais, com viés marxista.

Sua história de vida, densa e complexa, com ações inúmeras vezes desaprovadas pelo Vaticano, levaram Érika a optar por um documentário de linguagem tradicional, sem experimentalismos.

Dispensando depoimentos de personalidades, preferiu centrar-se, nas mais de 60 horas de imagens e nas gravações que captou com aqueles que conviveram estreitamente com o arcebispo.

O filme contém relatos do arcebispo sobre sua escolha, ainda na infância, pelo caminho clerical; a ordenação; a rápida passagem pelo Integralismo, atraído pelo caráter nacionalista do movimento; a transferência para o Rio, onde se tornou nacionalmente conhecido e começou a colocar em prática, de maneira mais efetiva, seus idéias de justiça e paz social. Durante este período, o religioso conheceu o futuro papa Paulo VI, abrindo caminho para sua mobilização que resultou na implantação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Segue mostrando que, numa tentativa frustrada de abrandar seu discurso e esvaziar suas ações na então politizada ex-capital federal, uma manobra militar levou-o ao Recife, onde dom Hélder não só continuou sua missão evangelizadora, marcada pela “Teologia da Libertação”, como atingiu projeção internacional.

No auge da perseguição política do governo militar, a Suécia o indicou quatro vezes consecutivas ao “Prêmio Nobel da Paz”, entre 1971 e 1974, que, afinal, nunca recebeu.

Documentos indicam uma ação secreta do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), embora nem o documentário de Erika, nem a biografia “Dom Hélder Câmara: entre o Poder e a Profecia”, dos professores Nelson Piletti e Walter Praxedes, publicada em 1997, e “bússola” do documentário, tenham conseguido comprovar esta interferência de maneira categórica.

Maristela Crispim
Repórter

LINHA DO TEMPO

1909
Nasce, no dia 7 de fevereiro, no Centro de Fortaleza, Helder Pessoa Câmara, 11º filho dos 13 do casal João Eduardo Torres Câmara e Adelaide Rodrigues Pessoa Câmara

1931
Ordena-se padre, aos 22 anos, com autorização especial da Santa Sé, por não ter a idade mínima exigida. No dia seguinte, celebra sua primeira missa, na Igreja da Sé

1931
Dedicado inicialmente ao Movimento da Juventude Operária Católica, funda, com amigos, a Legião Cearense do Trabalho, já simpatizante do Integralismo

1936
É transferido para o Rio de Janeiro, onde ingressa na Ação Católica com o intuito de contribuir para a renovação das práticas da Igreja e passa a ser conhecido nacionalmente

1952
É eleito bispo no Rio de Janeiro e ajuda a constituir a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da qual é secretário-geral por 12 anos consecutivos

1964
Torna-se arcebispo de Olinda e Recife, posição que ocupa durante 21 anos, período em que sofre perseguição da revolução militar e projeta-se internacionalmente

1970 a 1973
Indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, indícios levam a crer que companha de difamação movida por setores conservadores influenciou o resultado

1985
Dom José Cardoso Sobrinho assume o arcebispado de Olinda e Recife, fechando o Instituto de Teologia do Recife (Iter) e o Seminário Regional Nordeste II (Serene II)

1989
Uma grande festa reúne dom Helder Câmara, dom Aloísio Lorscheider e a então secretária de Cultura do Ceará, Violeta Arraes, em Canindé, para comemorar seus 80 anos

1999
Após completar 90 anos, dom Helder morre, dia 27 de agosto, na Casa Paroquial da Igreja das Fronteiras, em Recife, onde passou anos ouvindo música clássica e rezando

2006
Em 10 de setembro, Dia Mundial da Paz, o Diário do Nordeste publica uma edição especial da série ´Os Pacifistas´, destacando, como personagem, dom Helder

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