quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
"Espírito e arte"
por Jaci Maraschin(in memoriam)
Quando se fala de espírito estamos em face de um termo altamente equívoco e, portanto, plurívoco. A mesma coisa acontece com o termo arte. Cada orientação filosófica, religiosa e artística entende esses termos de maneiras diferentes. Além disso, no interior de cada uma dessas condições os significados se fragmentam e “espírito e arte” passam a querer dizer qualquer coisa segundo preferências, interesses e posições. Entre os filósofos, teólogos e artistas do mundo antigo e os da pós-modernidade a gama de nuances é enorme. Os que se acostumaram com o pensamento antigo situam o espírito mais para o lado da essência e da abstração do que os pensadores atuais. Os que praticam métodos acadêmicos para a produção e, conseqüentemente, para a produção de obras de arte não consideram arte o que faz, por exemplo, Duchamp. No campo da música as repetições do minimalismo e as dissonâncias da “música nova”, por exemplo, parecem pertencer a outra categoria de criação estética se comparadas com a música harmoniosa e agradável de Bach e Mozart.
Os teólogos, entre outros metafísicos, já analisaram o significado do termo “espírito” à exaustão. Paul Tillich, por exemplo, fala até mesmo da igreja como “comunidade espiritual”. Alguns conferem-lhe certa substância e, outros, caráter divino. O deus da metafísica é um ser espiritual. Nas definições dogmáticas, essa incompreensível espiritualidade chega mesmo a se transformar na terceira pessoa da santíssima trindade com o nome de “Espírito Santo” muito embora pouco pessoal e nada concreta.
Aqui no Brasil, talvez por influência do espiritismo, de movimentos pentecostais e carismáticos e de certos tipos de protestantismo, “espírito” significa a parte assim chamada “nobre” do ser humano, capaz de agir sobre o corpo de maneira purificadora e salvadora.Nesse caso, o corpo representaria a parte baixa e vil da pessoa. Pressupõe a desencarnação até mesmo quando se afirma a encarnação. A dialética da encarnação, desencarnação e reencarnação povoa boa parte do imaginário religioso em nosso país. Nos meios teológicos o Espírito Santo pode ser identificado com o que a tradição bíblica chama de espírito de Deus, também relembrado nas aulas de nossos seminários teológicos pelo termo hebraico, ruah, ou pelo grego, pneuma. Assim o espírito é também sopro, vento, ar.
É na concepção de ar que desejo situar o conceito de espírito em relação não apenas com a religião mas principalmente com a arte. Ao proceder assim, estou dando um salto arriscado sobre o abismo que separa a metafísica e a estética do passado e a pós-modernidade. E o que estou querendo dizer também se relaciona com o conceito semelhante de “alma” tão em voga nos meios religiosos e artísticos. Boa parte da pregação evangelística concentra-se em esforços para salvar a “alma” dos pecadores. Da mesma forma, dize-se sem muita reflexão que este ou aquele artista interpreta a obra de arte a seus cuidados “com alma”. Eu costumo dizer que um bom pianista é o que toca seu teclado com as mãos e que melhor realiza o seu trabalho se possuir a necessária técnica para executar a obra que apresenta. Acho que, nesses casos, a palavra “alma” é utilizada de maneira equívoca. Talvez ajude o leitor relembrar que essa palavra, “alma”, vem do latim “anima”, raiz de nossos vocábulos, “ânimo, animação, animal, animalidade” e, conseqüentemente, com seus opostos, “desânimo, desanimação, e negação do animal e da animalidade”. Dizemos que os seres vivos são seres animados. A nossa animalidade expressa a energia vital sem a qual nos desanimamos e morremos. Quando Maria, no Magnificat, faz poesia ( isto é, anima-se a cantar a vida), declara que sua alma engrandece ao Senhor, e que seu espírito se alegra ... , está querendo dizer que seu corpo, agora cheio ( prenhe) de vida, animaliza-se e respira com o sêmen que agora começa a transformar o seu corpo no processo vital da maternidade. O Espírito é sopro, vento e ar. Que outra coisa poderiam ter sido as palavras do anjo Gabriel senão essa ventania? O ato da procriação é ato animal. Essa animalidade, sem a qual nada se cria, realiza-se por meio do vigor alimentado pelo ar. Espiritualidade significa respirar, isto é, estar vivo e viver na animação dessa vitalidade.
Lembremo-nos da lenda da criação de Adão. Sem o ar soprado por Deus ele jamais teria passado de mero pó da terra transformado em barro e moldado pelas mãos de Deus como se fosse uma escultura. Só se tornou vivo quando se encheu de ar. E só se tornou ser espiritual quando começou a respirar. Espiritualidade, então, quer dizer isto: capacidade de respirar – respiração. Na lista estabelecida por Hegel, na sua densa e extensa obra sobre o Espírito, não encontrei esse conceito. Para ele, o espírito é a mente humana em contraste com a natureza; pode ser até mesmo o elemento psicológico embutido em cada um de nós, incluindo aí a intuição, a consciência, a vontade, etc. Para alguns religiosos, espírito, como já disse seria a mesma coisa que alma. Mas todos se esquecem do ar, mesmo se o ar é tão evidente nos livros sagrados.
Em nossa época, foi Luce Irigaray, filósofa francesa, que a partir de Anaxímenes, retomou o tema do ar no pensamento contemporâneo capaz de superar até mesmo as considerações de Heidegger sobre o ser e o tempo e sobre as relações entre ser e nada. Ela chama a nossa atenção para certas qualidades do ar: está em toda parte ( não era assim que a gente aprendeu a definir Deus no catecismo e na escola dominical de nossas igrejas?, é invisível, envolve a terra, sacode as árvores, ao mesmo tempo em que se faz sentir em nossa pele. Por que será que as religiões antigas inventaram os anjos? Esses seres voadores sempre foram aéreos. Aéreos e rarefeitos. Aéreos e misteriosos como o ar. Tornaram-se, em diversas tradições, sinônimos de beleza. Foram mensageiros dessa beleza aérea. Não será aérea toda a beleza? Vocês já se deram conta de que nossas experiências com a beleza tem a ver com a respiração? Que quando ficamos ofegantes nossa respiração se modifica? Ou será que ficamos ofegantes porque a respiração se enche do novo ar emanado da beleza? Dessa beleza aérea? Em outras palavras, estou querendo dizer que a beleza é leve. Porque os anjos eram feitos de ar podiam atravessar paredes e subir e descer quando bem quisessem. Os santos antigos levitavam. Ficavam cheios de espírito, isto é, ficavam parecidos com o ar. Os anjos foram representados com asas. Botticelli até mesmo chegou a pintar anjos com asas de borboleta. As asas das borboletas são mais leves do que as dos pássaros. Não têm penas nem ossos. Essas representações da imaginação artísticas não significam exigências para a existência dos anjos. Eles nem mesmo precisariam de asas porque eram feitos de ar. Essas representações não são exigidas por eles, mas por nossa ignorância. As narrativas da descida do Espírito Santo para encontrar os apóstolos de Jesus mencionam, no dizer pictórico do livro sagrado, a experiência de um barulho “que parecia um vento soprando muito forte que encheu toda a casa onde estavam sentados” ( At 2.2). As línguas de fogo, que eles teriam visto, após, só se tornaram possíveis por causa desse vento que teria enchido a casa de ar. Não há fogo sem ar.
Embora Kant não se tenha demorado muito na consideração do conceito de espírito, afirmou que era um elemento “estimulante” da mente. Que mais pode estimular a mente do que o ar?
Leiamos o parágrafo 49 escrito por ele na Crítica da faculdade do juízo :
“Diz-se de certos produtos, dos quais se esperaria que devessem pelo menos em parte mostrar-se como arte bela, que eles são sem espírito, embora no que concerne ao gosto não se encontre neles nada censurável. Uma poesia pode ser verdadeiramente graciosa e elegante, mas é sem espírito. Uma história é precisa e ordenada, mas sem espírito. Um discurso festivo é profundo e requintado, mas sem espírito. Muita conversação que entretém, pode ser, contudo, sem espírito; até de uma mulher diz-se: ela é bonita, comunicável e correta, mas sem espírito. Que é, pois, que se entende aqui por espírito?” E responde: “Espírito, em sentido estético, significa o princípio vivificante no ânimo”. Kant, porém , não consegue fazer retroceder seu pensamento ao poder que vivifica, que é o ar.
Walter Benjamin dizia , sem entender muito bem o que estava dizendo, que a característica da verdadeira obra de arte era a aura. Que queria dizer com isso? Referia-se à sua singularidade irrepetível e irreprodutível. O grande engano de Benjamin situa-se precisamente nessa afirmação dogmática posto que não se trata de aura mas de ar. No seu conceito de obra de arte não cabem as grandes obras do cinema nem da gravura nem mesmo da escultura para não falarmos do teatro e da música sempre repetíveis e reproduzíveis. Diz-se de uma sinfonia bem tocada que se trata de uma obra de fôlego. Que quer dizer fôlego? O nosso bom Aurélio nos ajuda: 1. Respiração. 2. Ato de soprar (estou me lembrando dos músicos que tocam flauta, oboé, fagote e trompete). 3.. Capacidade de reter o ar nos pulmões (que tal Jessie Norman?). 4. Espaço de tempo para refazer as coisas perdidas. 5. Fig. Ânimo, coragem. Assim, qualquer obra de arte será sempre obra de fôlego e por causa disso nos leva a “folgar”. Em outras palavras, nos dá prazer. Acaba sendo um folguedo.
A respiração nos faz seres espirituais e animados ( isto é, cheios de alma). Somos seres que respiram e que, por isso, vivem. É na respiração e por meio dela que criamos. Assim, as obras de arte são obras do ar. Sem querer, também dizemos que elas criam certa atmosfera. Quem visita, por exemplo, em São Paulo, a Oca, no Parque do Ibirapuera, sente essa atmosfera que não está presente apenas nas obras de arte que são ali periodicamente mostradas, mas na própria arquitetura que as abriga. É do ar que vem o movimento. As partes de uma peça musical chamam-se de “movimentos” . E quando recitamos nossos poemas e dizemos nossas frases, mesmo as mais banais, só fazemos isso se abrirmos nossas bocas e se deixarmos passar por elas o ar que as alimenta.
A espiritualidade, assim concebida, relaciona-se de maneira privilegiada com as obras de arte porque nelas nada mais importa do que seu aparecimento. Entre elas e o ar não se interpõem os elementos asfixiantes que experimentamos na poluição do trânsito, no ruído das máquinas e na agitação da bolsa de valores. São como os anjos. Quanto menos pesadas mais cheias de espírito e mais condutoras da respiração. Quanto mais destituídas de sentido ( de lógica) mais espirituais. Menos carregadas de mensagens. Mais transparentes ao ar que as envolve e torna possíveis. Portanto, mais perto da vida.
É por isso, talvez, que depois da metafísica e da teologia que morreram ou que estão morrendo asfixiadas pela falta de ar sobra para a nossa alegria e fruição a arte. A metafísica e a teologia morreram ou estão morrendo porque foram encerradas em grandes caixas de metal cuidadosamente fechadas com ferrolhos e parafusos de dogmas racionais, de princípios e de fundamentos sólidos e irrefutáveis e de certezas feitas de chumbo. Foram, além disso, embaladas em sistemas feitos de tecidos infalíveis e eternos, e de postulados entrincheirados em silogismos e conceitos puros. A história da metafísica e da teologia conseguiu produzir dentro dessas caixas o vácuo da academia. São containers sem ar.
A arte é ainda o lugar que sobra em nosso mundo para a respiração. É a clareira de que fala Heidegger, possível de ser encontrada depois de se percorrer a floresta cheia das sombras do pensamento puramente racional.
O espírito e a arte relacionam-se com o rito porque nele, celebra-se gratuitamente, o estar-no-mundo. Nossos rituais estendem-se desde os religiosos até os sociais e comemorativos. São as liturgias quando libertadas dos livros de reza, os festejos populares quando desvencilhados das manipulações do comércio, e os atos de amor quando libertados das regras heterônomas impostas pelo moralismo e pelo puritanismo de igrejas e grupos sociais. A gratuidade dos ritos pode derrubar a tirania dos que querem submeter a vida humana a leis e a dogmas que contrariam a vida e o prazer de viver.
O rito é, pois, obra de arte.
Um aluno de filosofia me perguntou, à queima roupa, que era arte. Fiquei perturbado porque não queria cair na armadilha metafísica da estética e lhe dar uma definição. Escrevi-lhe, então, o seguinte:
arte é o que a gente faz quando não tem nada para fazer
e faz apenas porque sente vontade de fazer o que vai fazer
não importa o que se faz
se pego uma pedra e tenho vontade de tirar uma lasca dessa pedra
eu tiro essa lasca e isso é arte
mas se eu não pego essa pedra e não tiro essa lasca
então não fiz arte
a arte é pois inteiramente inútil
não serve para nada que seja necessário
muito embora esse fazer acabe sendo uma espécie de impulso
sem o qual eu não saberia viver
nesse caso a arte passa da inutilidade
para a realização do que em mim não tem nenhum sentido
é parecida com o brinquedo
a diferença é que o brinquedo não foi feito por mim
a arte é o que eu faço quando não tenho nada para fazer
nada que venha de fora por imposição ou dever
a arte não tem dever
não é ética
ir ao cinema, por exemplo, não é arte
é apenas fruição da arte que um outro que não eu fez
mas a fruição da arte é também inútil
a não ser se considerarmos útil a fruição
ela só serve para ser fruída
e termina aí
fazemos usos da arte
mas os usos da arte não são arte
são apenas seus usos
e o artista não tem controle sobre eles
O autor foi editor da revista Correlatio e professor de hermenêutica e estética no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP. Foi Presbítero da IEAB.
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